quinta-feira, 30 de abril de 2020

XXXI


05/04/2020


Por mais abstrato que o conceito de “Deus” seja em comparação com os deuses politeístas, Deus ainda tem um resquício de animismo, e esse resquício facilita com que o grande público se relacione com a Vida e com o Mundo – que são conceitos que se referem ao Real (enquanto Deus é uma fantasia), porém, por não serem dotados de uma personalidade, de um animus, são mais difíceis de serem compreendidos pelo povão, por exigirem um poder de abstração invulgar. É mais fácil para o humano médio se relacionar com uma personalidade falsa do que com um abstração verdadeira mas sem personalidade. Mesmo porque a personalidade implica na possibilidade de oferecer algum auxílio mediante suplicas e adorações, enquanto a ausência de personalidade corta essa pseudo-possibilidade utilitária de intercâmbio.

Deus, assim, acaba sendo um artifício do instinto de conservação para ajudar o humano médio a aceitar as agruras da Vida e do Mundo. Ou seja, Deus é uma fantasia para facilitar a produção do amor fati. Ser submisso a Deus, se humilhar para ele, adorá-lo, não criticá-lo mesmo quando se está na penúria (vide o caso de Jó, citado à exaustão pelos cristãos), etc., nada mais é do que aceitar a vida como ela é, dizer Sim, mediado por uma fantasia animista. Assim como Nietzsche acusou o Cristianismo de ser um platonismo para as massas, podemos dizer que o próprio nietzscheanismo é um cristianismo para os eruditos, ou, se preferir, para os esnobes.

Se já é difícil as pessoas abandonarem crenças em geral (pois estão ligadas ao seu ego), se é mais difícil ainda abandonarem crenças incutidas em suas mentes em tenra infância por poderosas instituições sociais, mais difícil ainda é abandonar a crença em Deus (ou em deuses quaisquer), pois essa crença está intimamente ligada ao instinto de conservação, à forma como esse é racionalizado (é traduzido mediante signos) no neocortex.

Não que Deus seja o único artifício para o populacho chegar ao amor fati. Praticamente todo o esoterismo e toda autoajuda vai na mesma direção, vide “A Lei da Atração”, “O Poder do Pensamento Positivo”, etc.


13/04/2020


A pandemia da COVID-19 desnudou de forma extremamente concreta – a destruição de nossas mimadas rotinas – e essência irracional da vida (e, quiçá, do próprio universo dentro do qual a vida emergiu como subproduto da atividade da matéria): a autopoise, a concreção da Vontade denunciada por Schopenhauer. Não que acrescente algum conhecimento novo, apenas acrescenta-lhe uma demonstração cabal, intuitiva, espetacular. Previsivelmente, não vi ninguém comentando sobre isso. Pelo menos, após tantos anos de desgraça e agora ainda isso, até os otimistas mais despudorados estão dando sinal de cansaço e de que vão jogar a toalha. E é só o começo de nossa via-crúcis. Vai piorar.



18/04/2020


Agora, que a morte se aproxima para todos os humanos, venho pensando bastante na minha vida. Se há algo que não me arrependo nesta vida, é da pornografia que consumi. Valeu a pena cada foto e cada vídeo. Evidência de como estou longe de atingir a salvação que eu mesmo apresentei no Post (mortem) scriptum. Se é que essa salvação existe.



19/04/2020


Em março desse ano eu fui diagnosticado como tendo TEA (Transtorno do Espectro Autista), grau 1 (autismo leve, Síndrome de Asperger, CID F84.5). Foi o fechamento de um processo que começara em agosto de 2019, quando eu me autodiagnostiquei como sendo autistas. O processo envolveu três médicos (sendo um deles uma psiquiatra especialista em autismo) e uma psicóloga especialista em avaliação neuropsicológica (a qual realizou testes padronizados comigo ao longo de 9 consultas antes de chegar ao fechamento do diagnóstico).

Embora algumas das minhas características exibidas em meus textos possam decorrer do autismo, após 8 meses acompanhando as produções audiovisuais de autistas na internet eu pude concluir que ao menos três características bem marcantes da minha idiossincrasia não são fruto do autismo: 1. o pessimismo; 2. a agnosia/o ceticismo; e 3. o sofrer por não saber a verdade (essa última é, de longe, a característica mais rara que eu tenho, estimo que só ocorra em uma pessoa a cada 100 milhões).

Por umas semanas, eu desconfiei que o mundo poderia ser melhor só com autistas, mas, após tantos meses acompanhando autistas e ao descobrir que figuras como Paulo Kogos são autistas, essa hipótese foi descartada. Já convivi com mulher vegana praticante de CNV e de yôga para descobrir que se o mundo fosse repovoado só com gente deste demográfico ainda sim ele (o mundo) seria uma merda e estaria condenado ao suicídio. Não há salvação para humanidade, nem mesmo salvação meramente imaginária.


24/04/2020


"O que se deve fazer num mundo onde quase tudo que vale a pena ter ou fazer é impossível?" (Bukowski)


"O paraíso não era suportável, senão o primeiro homem ter-se-ia acomodado a ele; este mundo também está longe de o ser, porque nele lamentamos o paraíso ou gozamos antecipadamente um outro. Que fazer? Onde ir? Não façamos nada, nem tentemos ir a lugar nenhum, muito simplesmente." (Cioran, em "Do inconveniente de ter nascido")


Mas sem uma herança, ou sem um prêmio de loteria ou sem a renda mínima do Suplicy, morremos de fome se não fizermos nada... Como diz o próprio Cioran, vivemos numa paródia do inferno.


28/04/2020


Comparando o omniverso com a execução de um arquivo de mídia

O arquivo é o nada/tudo (sim, nada e tudo se encontram, como dizia Hegel para o horror de Schopenhauer), a “placa holográfica”, a totalidade das partículas virtuais e todas suas interações possíveis, o mundo das ideias de Platão: um repositório estático com TODAS AS INFORMAÇÕES DE TODAS AS POSSIBILIDADES DE INTERAÇÃO DE TODOS OS ELEMENTOS FUNDAMENTAIS (BRANAS?). Há um mecanismo, tipo uma vitrola, tipo um computador, que “lê” o arquivo, reproduzindo assim as informações em espaço-tempo e energia-matéria. Vivemos nessa reprodução. Pense num filme em streaming. Vivemos no filme, ele é o universo que sentimos. Mas a informação do futuro já existe, assim como a do passado se conserva. Essa informação precisa de um mecanismo para ser executada, “rodada”, e assim consubstanciar, concretizar, a materialização do fluxo informacional no tempo.

Este universo em particular é a execução/leitura de um dos caminhos (um desdobramento entre zilhões e zilhões de possibilidades). Cada universo, ou mesmo cada multiverso, é a execução/leitura de um outro caminho. (O multiverso em que estamos é formado por todas a variações quânticas da configuração inicial de um Big Bang específico; mas há zilhões de configurações de Big Bangs; logo, há zilhões de zilhões de multiversos: o omniverso.)

Os chamados “fenômenos psi” decorrem do “hackeamento”, de “falhas” na execução desse arquivo (ou mesmo de aparentes falhas, isto é, de falhas que só aparecem como falhas porque não temos um conhecimento mais completo da hiperfísica envolvida). De alguma forma, nossas consciências estão conectadas nesse domínio informacional atemporal. Esse tipo de modelo abre espaço para uma espiritualidade niilista hiperfísica. Assim, não se faz preciso fugir da possibilidade a existência de fenômenos “espirituais”, como fazem os neoateus, os ateus materialistas e os cientificistas.