quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

XXXIII

 

17/10/2020

Assim como as teorias da conspiração trazem um conforto ao passar a ideia de que tudo está sobre controle (afastando o desconforto da aleatoriedade e mesmo do caos), as teorias da razoabilidade trazem o conforto de que não há psicopatas maquinando com sucesso planos de manipulação e de extorsão do público, pois, se esses planos existissem, eles viriam cedo ou tarde a público (afastando assim o desconforto de imaginar que somos todos otários manipulados por poderosos que ficam mais poderosos às nossas custas). Assim como as teorias da conspiração apelam para uma racionalidade da planificação, dos arquitetos (e nesse sentido podem lembrar o pensamento religioso), as teorias da razoabilidade também lembram os pensamentos religioso, otimista e racional ao apontar para um mundo essencialmente bom, no qual o acaso e a trairagem humana impedem, por um mecanismo homeostático de bem-aventurança semelhante à Mão Invisível que regula o mercado, a consecução de atentados ao bem comum. O mundo do teórico da conspiração pode ser um mundo onde tudo é controlado, mas é um mundo governado pelo Mal, por um demiurgo e seus arcontes; já o mundo do teórico da razoabilidade trás o desconforto da aleatoriedade e mesmo do caos, porém trás o conforto das forças anônimas que produzem uma confortável homeostase em um mundo essencialmente Bom e no qual a humanidade progride para uma sociedade cada vez melhor (basta ver as pautas padrão da divulgação científica). Ou seja, tanto teóricos da conspiração quanto teóricos da razoabilidade podem ser acusados de elaborar suas teorizações em função de vieses cognitivos, de afinidades eletivas e em função da busca por sensações de conforto e segurança. O que faz uns penderem para uma forma de pensamento e outros para outra são as diferenças de personalidade e de temperamento.


18/10/2020

Os indivíduos que trabalham com divulgação científica são, em geral, cientificistas, e, como tais, são iludidos pelo prometeísmo tecnológico que é um dos mitos fundamentais da modernidade. Essa ideologia lhes impinge um viés cognitivo que torna-lhes difícil imaginar o suicídio da espécie humana (mais especificamente, o suicídio de um modelo de civilização e o assassinato dos outros modelos de sociedade humana), o qual, por sua vez, seria impossível sem justamente os instrumentos que “a neutra ciência” lhe deu.

E, ainda por cima, há outro viés cognitivo, esse de origem profissional: a divulgação científica, para ter audiência (e assim dar lucro ou ao menos cobrir seus custos), precisa ser curta, superficial e – principalmente – otimista. As pessoas não vão dar audiência para um produto de comunicação que fica lhes dizendo que a vida delas será pior (ou mesmo muito pior, ou mesmo impossível) em um futuro próximo, e que para evitar esse futuro elas precisam diminuir a sua pegada ambiental (sendo que 99,9% das pessoas gostaria de ter acesso a mais recursos, a mais mercadorias, a mais serviços, porém a ciência fica lhes dizendo para querer menos ou todo mundo pode morrer depois de 2.100 – ano convenientemente longe para não parecer ameaçador a quem está consumindo o produto de divulgação científica). A divulgação científica só consegue se pagar trazendo boas notícias e fazendo repetidas referências (e deferências) à cultura pop e à ficção científica: somente assim o público se digna a dar-lhe alguma atenção.

O divulgador científico possui, portanto, e isso além dos vieses cognitivos que as pessoas comuns já possuem, vieses cognitivos ideológico e profissional para ignorar, ou para subestimar, o colapso ambiental em curso. Mesmo quando fala no assunto, pois afinal ao menos a defesa da existência do aquecimento global antropogênico é uma das pautas recorrentes do típico profeta da ciência, ele é apenas mais um assunto, jogado no meio de dezenas e dezenas de outros, esses sim atraentes, divertidos, excitantes para o público. O resultado é que a maioria dos divulgadores científicos sequer se aprofunda na questão do colapso, fugindo instintivamente do assunto, pois afinal já sabe que não poderá falar dele em seu trabalho se quiser continuar a ter esse trabalho (e a receber a fama e o dinheiro vindos dele). Talvez alguns, apesar de todos esses vieses, até se aprofundem, mas, bons atores, não falam sobre, fingem que não sabem ou que sabem pouco.


11/01/2021

Ou somos escravos explícitos de um despotismo, ou somos escravos implícitos de uma suposta democracia falsa totalmente corrompida por detrás dos panos. Ou somos escravos de um tipo de horda de psicopatas e maquiavélicos, ou de outro tipo de horda de psicopatas e maquiavélicos, mas sempre estamos submetidos a esses indivíduos em qualquer civilização. Assim que começou a surgir o excedente econômico e assim que se complexificou a divisão social do trabalho, os psicopatas e maquiavélicos (que são os protagonistas da História enquanto nós somos os figurantes) tomaram o poder para nunca mais largá-lo. Mesmo os movimentos que lutam genuinamente pela emancipação humana frente a esses senhores do mundo acabam invariavelmente sendo corrompidos e virando eles próprios instrumentos de reprodução de nossa escravatura. E assim prosseguirá a tragicomédia da História, até a extinção da espécie humana.


14/01/2021

As utopias-ideologias transformam — no discurso apenas, não na prática concreta — contradições insolúveis (aporias, dilemas, trade-offs, impasses, etc.) em problemas, isto é, em situações supostamente passíveis de solução. Mas para fazerem essa transformação, e assim criarem uma solução fictícia,  elas precisam falsificar a descrição do Real, precisam descrevê-lo de maneira falsificada, reducionista, simplificada, amputada, caricaturizada, maniqueísta, otimista ingênua, não raro apelando para generalizações apressadas e incorretas mas que apresentam-se como "lógicas" e "racionais" por utilizarem-se, inclusive de forma forçada e mesmo equivocada, dos chavões da lógica clássica (como se essa desse conta do Real). E, por basearem suas supostas soluções em um falso diagnóstico (em uma descrição de um "problema" e não de uma contradição insolúvel), não conseguem de fato resolver nada a que se propõem, mesmo quando seus representantes conseguem forte hegemonia na sociedade. Ou seja, como humanos ou nós admitimos que não há solução para nossa condição ou nos enganamos com falsas soluções que nunca chegam de fato a serem implantadas, pois são ficções impossíveis de se colocar em prática. Já a solução mesmo, nunca a teremos.