quarta-feira, 27 de abril de 2022

XLII

 

29/03/22


A cegueira generalizada


É irrazoável esperar que pessoas sem letramento científico entendam e aceitem a realidade do aquecimento global, entendam e aceitam a realidade da evolução por seleção natural, entendam e aceitem os conhecimentos básicos de cosmologia, consigam evitar cair nas dezenas de pseudociências que pululam o cotidiano, etc.


Mas como ter "letramento científico"? São basicamente três caminhos: ou ter um bom ensino médio (a maioria não tem), ou concluir uma boa faculdade de alguma ciência natural (a maioria não chega a cursar), ou estudar metodologia científica e conhecimentos científicos por conta própria (nem que seja pelo estudo livros e vídeos de divulgação científica; mas a maioria das pessoas só estuda, mal e porcamente, algum conteúdo que seja útil para tentar ganhar dinheiro ou para tentar ganhar outra forma de poder sobre as demais pessoas).


Assim sendo, não é de surpreender a incultura científica generalizada. E é inútil tentar ensinar em poucos minutos de conversa, ou mesmo em algumas horas de conversa (se essas estivessem disponíveis, e em geral não estão), o que a pessoa não aprendeu na educação formal ou não buscou aprender pesquisando por conta própria.


Essa falta de letramento científico também ajuda a entender a cegueira generalizada a respeito dos fundamentos materiais da existência humana (e, portanto, a respeito da insustentabilidade no nosso estilo de vida). Se bem que essa cegueira atinge até os letrados cientificamente, embora seja mais fácil para eles perderem ela.


Os humanos (ao menos as culturas humanas hegemônicas) se perderam nos labirintos da "cultura", no domínio do simbólico, esquecendo da matéria; seu afã de se afastar da natureza foi tanto que eles ficaram cegos para as bases materiais da sua própria existência.

Mesmo os "materialistas históricos/dialéticos" se perderam totalmente na crítica cultural e na luta pela hegemonia (com vistas à sua utopia política pueril), e são cegos às bases materiais de nossa existência coletiva. E os religiosos em geral, então...; se praticamente todas as religiões, senão todas, concordam com uma ideia de essência humana imaterial (espiritual, anti-animal), que fundamentação ontológica elas teriam para lutar contra essa cegueira que está nos levando à extinção? Ao contrário, elas são praticamente a origem dessa cegueira... Se elas foram úteis para criar o fenômeno propriamente humano, também estão sendo úteis para levá-lo ao seu fim. 

A humanidade, para sobreviver, precisaria subitamente realizar um giro de 180° no caminho que vem seguindo, o que obviamente não acontecerá. E mesmo que acontecesse “nos 48 minutos do segundo tempo”, seria tarde demais, pois não dá (é fisicamente, materialmente, e tecnicamente impossível) para consertar em poucos anos ou décadas um estrago produzido cumulativamente ao longo de séculos ou mesmo milênios. Não existem milagres, nem almoço grátis.


Alguém pode objetar que eu, então, me acho o não cego numa terra de cegos? Que eu me arrogo a petulância de saber o que a maioria não sabe? Incluindo nessa maioria quase todas as pessoas que inclusive têm mais educação formal do que eu e que têm uma autêntica e farta produção intelectual e mesmo científica, isso? Sim, isso mesmo. Mas o curioso é que nenhum dos conhecimentos que eu possuo, inclusive todos os ligados ao fim do mundo via colapso ambiental (solenemente ignorado por quase todos os 8 bilhões de humanos de todas as culturas, graus de instrução e classes sociais), é “secreto”: eles estão ai para quem quiser encontrá-los. Ocorre que as pessoas simplesmente não querem encontrá-los; elas têm centenas, milhares, de outras prioridades. O que eu sei, eu sei por uma mera questão de ter priorizado essa busca, enquanto a maioria priorizou e prioriza outras coisas. As informações estão aí para quem quiser conhecê-las, são públicas. Mas quase ninguém quer saber. É uma autêntica vontade de ignorância. Tragicômico.



04/04/22


As principais necessidades humanas atendidas pelas religiões


1. Auxílio: Primeiro, um auxílio real (por meio dos serviços prestados a título de caridade e solidariedade pelos adeptos da religião, e pela rede de apoio criada por eles) e um auxílio imaginário (criado pelo comércio imaginário com os deuses) que tem um efeito de elevar a confiança e a motivação das pessoas, facilitando a adesão à vida e a submissão aos poderes estabelecidos.


2. Convivência: A religião oferece grupos de convivência, o que atende a necessidade humana atávica de interagir com outros humanos, formar laços. Remete à vida humana primitiva (e mesmo dos hominídeos e a maioria dos mamíferos), a qual ocorria em pequenos grupos: foram em pequenos grupos que os nossos genes sociais foram selecionados.


3. Familiaridade e segurança: uma vez as crenças religiosas implantadas nos cérebros em formação das crianças (ligando-se à base da formação dos seus modelos de mundo, ligando-se a experiências primordiais e a sentimentos atávicos), sair do mindset religioso torna-se fonte de insegurança: permanecer sob a religião é o caminho mais curto e seguro para o indivíduo fugir do medo focar em administrar a sua vida.


Esses três pontos acima são os motivos principais a atrair e manter os indivíduos sob a religião. Mas há ao menos mais dois, que são estatisticamente menos comuns:


4 Disciplina: A religião oferece um sistema de cresças que promovem o foco e a disciplina, a administração da própria vida (autocuidados) de forma a aumentar a homeostase com o resto da sociedade, e assim obter vantagens da divisão social do trabalho e do excedente econômico. Do ponto de vista da sociedade, a religião oferece um sistema teórico e prático de disciplinamento dos corpos e mentes. Mas a maioria das pessoas geralmente não vão atrás da religião pensado em ter isso, esse acaba sendo um benefício secundário (não imediato) para elas. Elas são disciplinas, em geral, contra a sua vontade imediata, mesmo que depois, disciplinadas, percebam a vantagem dessa disciplina.


5. Explicações ontológicas e axiológicas: A religião oferece um conjunto de respostas prontas para uma série de dúvidas ontológicas e axiológicas, o que facilita a vida da maioria das pessoas (que assim não precisa pensar sobre o assunto, basta aderir ao que a religião diz). E mesmo para aqueles que gostam de pensar, a religião oferece um labirinto sem fim de teologias e literaturas, que podem dar ao seu estudante a convicção de sabedoria, de verdade e de profundidade. Mas quando o motivo principal pelo qual alguém busca a religião é a questão da verdade, aí invariavelmente a pessoa acabará por abandonar a religião, pois ela (a religião) não se sustenta na psique de uma pessoa apenas por esse aspecto tão fragilizado em virtude da competição com tantas outras explicações disponíveis, ou mesmo da competição com o livre pensar.



12/04/22


Adultos infantilizados, crianças adultificadas


Freud alegou que a maioria dos adultos são simplesmente crianças grandes. Os supostos adultos (do ponto de vista jurídico e social são adultos, mas, na prática, não são muito menos infantis que as crianças) passam sua adulticidade revivendo os conflitos da infância, sem grandes progressos psicológicos ou morais.


Mas o que eu quero salientar aqui é um outro aspecto, que eu não sei se foi abordado por Freud: é a contradição que há entre os outsiders que atingem uma maturidade intrapessoal mas fracassam no jogo da vida (e por isso são tidos como infantis) e entre os insiders que têm sucesso nas métricas do jogo da vida (e que por isso são tidos como adultos), mas que não se diferem muito de crianças em termos intrapessoais (inclusive mantém intactas em suas mentes muitas das crenças falsas que a religião, a mídia e o senso comum lhe incutiram na infância).


Para a pessoa desconstruir o castelo de mentiras do senso comum, das ideologias hegemônicas e das baboseiras religiosas enfiadas em nossos cérebros desde a infância, é necessário um trabalho intelectual hercúleo, e, ainda, um longo e doloroso trabalho de autoconhecimento e de autocrítica. Ao empreender todo esses esforço, a pessoa assume um custo de oportunidade: ela foca menos em obter sucesso no “jogo da vida”, em ter sucesso no campo dos relacionamentos e no campo da produção econômica ("mercado de trabalho" e "empreendedorismo"). E, ao focar menos nesse jogo, é natural que ela tenha menos sucesso nele. Ao ter menos sucesso, ela será lida como uma pessoa fracassada, e mesmo será tida como infantil e imatura. Uma pessoa de quase 40 anos que não constituiu família e nem foi promovida em sua carreira várias vezes só pode ser infantil, pensam os insiders “adultos” (que são “adultos” porque casaram, têm dois filhos e foram promovidos em suas carreiras, embora ainda acreditem em papai Noel (Deus)). Às vezes uma pessoa de quase 40 anos sem filho e que não foi promovida em sua carreira (ou nem carreira tem) é infantil e imatura mesmo, mas nem sempre. Mas, como os insiders em geral nem sabem da existência dos outsiders, fica realmente difícil para eles tirarem uma conclusão diferente dessa...


Inversamente, o insider que consegue “ter sucesso” no “jogo da vida”, que casou, teve filhos, tem uma renda boa, uma carreira ascendente, etc., esse insider, dizia eu, precisou focar tanto nesse jogo que a sua mente é completamente acrítica e ingênua no que diz respeito à desconstrução do senso comum, das ideologias hegemônicas e dos infantilismos das religiões. Esse “adulto bem-sucedido” é, do ponto de vista ontológico e epistemológico, praticamente uma criança, vive num realismo ingênuo e acredita no papai Noel e em outras ilusões obviamente falsas. Se não fizer terapia (e às vezes mesmo tendo feito ela por anos), ou se não tiver ao menos tido uma boa infância e bons pais (o que é raro de se ter), ainda por cima provavelmente ele será altamente imaturo emocionalmente, mesmo que tenha “aprendido” muito criando seus filhos e progredindo em sua carreira. Mas, para o outsider que decifrou o enigma do mundo, que desceu até o fundo do abismo e voltou, esse insider “adulto” é só uma criança grande.



26/04/22


Os cinco motivadores para os que acreditam que estão lutando por um mundo melhor:


1 A busca genuína por diminuir o sofrimento alheio. 

Essa primeira está no domínio da generosidade. E quatro seguintes estão no domínio do egoísmo:


2 A pessoa ajuda sem querer nada material em troca e até sem querer status, mas acredita que Deus, ou "o universo", vai recompensá-la mais tarde. Ou mesmo espera que quem ela ajudou eventualmente retribua no futuro, numa espécie de toma lá, dá cá. Esse pensamento é muito difundido no campo da autoajuda e da espiritualidade: as pessoas são encorajadas a ajudar sem querer nada em troca, mas são também encorajadas a acreditar que serão recompensadas justamente por ajudar sem querer nada em troca... Uma série de histórias (supostos casos reais) são relatadas mostrando exemplos edificantes de pessoas que ajudaram sem pensar em recompensa e... foram recompensadas por sua generosidade. 


Nesse campo de uma recompensa potencial (ideal, imaginaria, virtual), há também as promessas de recompensa no pós-morte (seja ir para "o céu", seja reencarnar em situações mais favoráveis, etc.)


3 A busca por status: está no domínio do poder intersubjetivo: a pessoa ser reconhecida como tendo superioridade(s) em relação aos demais. Pode ser apenas superioridade moral (como no caso de um Chico Xavier, por exemplo), mas geralmente essa dita superioridade é remunerada com acesso a uma porção maior de consumo do produto econômico da sociedade, o que nos leva a ao quarto motivador. Mas o status tem valor por si próprio, independentemente de quão remunerado ele seja em termos de acesso ao consumo de valores de uso. O status é agradável ao ego, pois faz a autopoiese dele, a sua expansão. Ao se sentir superior em algo (ou em mais de uma área) em relação aos demais, e ao ter essa superioridade reconhecida por outros indivíduos, a pessoa pode se regozijar por estar acima dos demais. Ela pode, inclusive, se regozijar por acreditar, via efeito halo, que ela é simplesmente uma pessoa superior às demais: a superioridade numa área ou outra vira superioridade em geral. As pessoas religiosas que abdicam do acesso à riqueza material não raro não abdicam do reconhecimento alheio da sua superioridade moral; elas adoram ser vistas como um exemplo que os outros deveria seguir; ou seja, são superiores aos outros no campos da moral, da virtude e da espiritualidade; o mundo seria um paraíso se todos fossem como elas, ou ao menos tentassem ser.

Mesmo que elas acreditem que estão se libertando do ego, na verdade estão o alimentando, ainda mais com as ilusões de que têm contato com o transcendente e de que irão sobreviver e prosperar no mundo espiritual do pós-morte. Novamente, o caso de Chico Xavier é bem ilustrativo dessa falsa modéstia. 


4 Busca por riqueza material: está no domínio do poder objetivo: a pessoa com status em geral é remunerada com acesso a uma porção do produto econômico maior do que a porção que as pessoas com status menor do que o dela. E, assim, delineia-se uma estrutura social piramidal. Há exceções, em especial no caso em que a pessoa quer exibir uma superioridade moral pela via da renúncia aos prazeres do mundo (o que geralmente acontece no campo religioso). Apesar dessas exceções, a regra é que o status intersubjetivo seja acompanhado por um maior acesso ao consumo dos valores de uso (dos "bens", como chama a economia mainstream).


5. Quando o "melhorar o mundo" passa por se opor a um ou mais grupos de pessoas ou de instituições (e isso praticamente sempre acontece, pois os mocinhos precisam estar em luta heroica contra vilões), não raro esse desejo de suposta melhoria do mundo é alimentado por um desejo de vingança, o qual, por dia vez, é fruto do ressentimento, da inveja diante do sucesso alheio. Esse motivador também está ligado à autopoiese do ego.


A combinação dessas cinco  motivações não é fixa na vida de uma pessoa, ou de uma instituição. Diferentes pessoas, em diferentes momentos, serão motivadas por uma composição diferente desses cinco motivos.  A depender da personalidade (mais especificamente, do caráter) de cada um, um motivador terá mais peso do que outro. Pode até ser verdade que algumas pessoas (minoritárias) realmente são movidas apenas pelos dois primeiros motivos, enquanto outras (maquiavélicas profissionais e mesmo psicopatas) são movidas apenas pelo terceiro e pelo quarto e fingem serem motivadas pelos dois primeiros, mas a maioria parece ser motivada por uma confusa mistura dos cinco. E mesmo é provável que a maioria das pessoas nem saiba o que realmente a move. É supercomum que a pessoa ache que está sendo movida por motivos generosos enquanto nem percebe os motivos egoístas atuando em sua mente. Para perceber e aceitar a atuação desses motivos menos nobres, já é preciso uma dose se sinceridade que é inacessível à maioria. O autodesconhecimento atinge a maioria, mesmo porque o autoconhecimento é um trabalho longo e penoso, ao qual a maioria está longe de se dedicar e mesmo de ter condições de fazê-lo. E como as pessoas são educadas (com forte influência da moralidade cristã) a considerar apenas legítimas as motivações generosas, e como, ainda, são educadas a acreditar que toda motivação egoísta é digna de punição, elas acabam se esforçando para esconder dos outros, e mesmo de si próprias, as suas motivações egoístas.


Quanto à mudança da composição desses motivadores ao longo de uma jornada, o roteiro mais típico de acontecer é a motivação generosa ir enfraquecendo frente às outras três à medida que uma pessoa ou uma instituição envelhece e vai acumulando poder, patrimônio e responsabilidades: a pessoa pode começar motivada por ajudar aos outros, mas a experiência e as responsabilidades do poder vão corrompendo essa motivação original e fortalecendo as outras três.


É exagero e reducionismo dizer que quem se coloca na posição de lutar por um mundo melhor o está fazendo apenas para ter controle sobre os demais (poder) ou para receber recompensas ou para se vingar, mas também é reducionismo ingênuo acreditar que a pessoa é movida apenas por generosidade pura de interesses egoicos. 


27/04/22


Quase 200 vieses cognitivos:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Vi%C3%A9s_cognitivo#/media/Ficheiro:Codex_Vi%C3%A9s_Cognitivos.jpg


Quais seriam a qualidade e a quantidade das crenças de alguém que genuinamente tentasse diuturnamente escapar a todos eles?