domingo, 23 de julho de 2017

XXIV

10/07/2017

Que fazer com as evidências anedóticas?
Se fôssemos acreditar simultaneamente em todas as evidências anedóticas que as pessoas relatam e que indicam a existência de “algo a mais” além do mundo reconhecido pelo senso comum e pelas ciências, uma das conclusões que poderíamos tirar (e, se não me engano, foi essa a tese do ótimo Charles Fort) é que vivemos numa espécie de confluência/superposição de diferentes mundos, a qual erroneamente acreditamos ser um mundo só. Outra conclusão, nem não tão distante dessa primeira, é imaginar que estamos num mundo virtual, simulado, no qual são rodadas simultaneamente diferentes simulações cosmológicas.   Também gosto da metanarrativa do David Icke, vejo-a como uma boa atualização pós-moderna da Gnose, uma que consegue englobar essas múltiplas e superpostas simulações em que estamos enredados.
Outra solução, bem mais plausível no meu ver, para esse impasse é não acreditar nesses relatos extraordinários, é ver essas pessoas como charlatães e maquiavélicas, ou como pessoas delirantes sem autocrítica, ou como uma mistura de ambas as condições. Pelo menos da minha parte, eu imagino que, se eu vivenciasse as experiências que essas pessoas alegam vivenciar, eu não acreditaria nas conclusões que elas tiraram do que viveram. As pessoas em geral concluem, seja lá o que for, rápido demais, e as que vivem (nem que só em suas cabeças) os traumas dessa experiências extraordinárias tendem a querer uma conclusão peremptória ainda mais rapidamente. Mas a verdade é tudo menos algo que se alcança facilmente. Cada um de nós está preso na própria cabeça, e a realidade que cada um inventa pode ter pouco ou mesmo nada a ver como o real que estimulou a consciência a produzir essa sua representação em particular. Tudo é possível, pelo menos dentro das cabeças delirantes humanas. É apenas com muito esforço e método que conseguimos prescrutar o real por trás da polifonia das realidades. 
É em virtude de vieses cognitivos que as pessoas decidem dar crédito (ou mesmo que seja só atenção) a determinadas evidências anedóticas em detrimento de outras. O mais razoável e menos viesado seria desprezar todas igualmente. E se isso vale para as evidências anedóticas, vale mais ainda para as meras argumentações, para as elucubrações da “razão pura” (pura de evidência empírica, mas não de desejo).
(continua em 23/07/2017)


14/07/2017

Não sei exatamente quando, mas em algum momento entre seus 15 e 21 anos Lucas Caetano da Rosa, o vulgo “Vagazoide”, já havia perdido a fé na humanidade. Quem me dera eu não tivesse precisado de 13 anos de estudos de Schopenhauer e de Cioran para conseguir eu também essa realização!

15/07/2017

Qualquer narrativa que prometa uma solução para o impasse da existência humana é utópica, fantasiosa, não importa qual seja seu conteúdo específico, qual seja o seu nível de complexidade, ou qual seja seu púbico-alvo.

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Os charlatães de todas as estirpes fazem tanto sucesso simplesmente porque as pessoas querem ser enganadas, precisam mesmo de ilusão para suportar viver e realizar a autopoiese nesse deserto dor real. Olhe a sua volta.

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Que sucesso a pessimista Gnose teria tido se não prometesse a salvação ao menos para uma meia dúzia de eleitos?

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Embora se chame “autoajuda”, depende do intermédio de gurus, de figuras de autoridade.

17/07/2017



“É preciso imaginar Sísifo feliz.” (Camus)

Ou seja, para não se matar é necessário ser masoquista. E eu já cogitei levar a sério esse imbecil. Qual a diferença disso e de acreditarmos que não podemos nos matar pois nossa vida pertence a Deus? Ou, ainda, acreditarmos que devemos nos submeter a um imperativo categórico (racional (Kant) ou irracional (Nietzsche), tanto faz)? A solução de Camus é até pior, pois propõe um masoquismo que se esgota em si mesmo, que sequer se fundamenta  em um alhures. No mais, é tudo devaneio do instinto de conservação, com diferentes graus de erudição e de ingenuidade. É tudo tão medíocre que custa-me crer que se trata de alta literatura, e não de mais um livro qualquer de autoajuda. Eu ganharia mais indo atrás de macho (o que não faço, pois considero uma perda de tempo) do que lendo esses “grandes pensadores”.
O único argumento que eu acho válido contra o suicídio é esperar que a vontade de se matar pode passar. No meu caso, levou 13 anos e uma tentativa de suicídio quase bem sucedida para passar.

18/07/2017

Em virtude dos mecanismos de defesa do ego, as pessoas sempre inventam racionalizações para justificar suas atitudes, de tal forma que, quando precisamos avaliar se vale a pena lidar ou não com alguém (e, se valer, como lidar com a pessoa), devemos avaliar as consequências de suas atitudes, e não as justificativas apresentadas.

21/07/2017

Se eu tivesse que me definir por algum “ismo”, diria que estou em algum lugar entre o eudemonismo e o niilismo: um eudemonismo niilista, ou um niilismo eudemonista, ou algo por aí.

22/07/2017

No começo de suas ruminações sobre a morte, o convalescente Ivan Ilitch fica feliz ao pensar que todos passarão pelo que ele está passando. Mas não é bem assim. Todos morreremos, mas nem todos teremos a sorte de uma morte lenta (que dure meses, como o caso dele) e dolorosa. A maioria das pessoas, covarde como sempre, deseja inclusive uma morte rápida, inconsciente e indolor – seu sonho é morrer dormindo, para que não tenham que enfrentar a morte nem mesmo no momento de sua consumação.

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Ciclo vicioso: Assim como a/o esperança/otimismo alimenta o desejo, as ações práticas realizadas com o fito de conseguir o objeto de desejo implicam, uma vez que possuem custos (tempo, energia, esforço, concentração, custos de oportunidade, etc.), num reforço positivo da/o esperança/otimismo – e assim aumenta o sofrimento. Quanto mais perseguimos prazeres, mais infelizes ficamos.

23/07/2017

(continuação da nota de 10/07/2017)
Comparemos, por exemplo, as experiências de quase morte (EQM) de Andressa Urach e de Eben Alexander III (essa última inclusive foi inspiração para a elaboração do meu Post (mortem) scriptum). 
Embora ambas as experiências tenham uma narrativa semelhante e apontem para a existência de um Deus bom e misericordioso (um anti-demiurgo), enquanto a de Urach ratifica a narrativa padrão da IURD, a de Alexander III basicamente delineia um narrativa tipicamente new age, espiritualista e que pretende-se unificadora de todas as religiões. Enquanto Urach diz que respeita as outras religiões e que está somente relatando a sua experiência, a sua realidade, Alexander III, mais megalomaníaco, alega, e inclusive estrutura a sua narrativa para oferecer evidências anedóticas disso, que a sua EQM foi bem mais profunda do que todas as outras, e que ele teria alcançado o centro do mundo espiritual (enquanto as outras penetraram menos nele).
Ora, se supormos (e não é essa para mim a hipótese mais provável) que essas ambas experiências de fato são mais do que alucinações e que ambas entraram em contanto com domínios do real que estão corriqueiramente inacessíveis aos humanos mas que estão em constante intercâmbio com o “aqui, desse lado”, então teremos que admitir a existência de múltiplos domínios do real, que são ou paralelos e sem hierarquia (horizontais) ou concêntricos e hierarquizados (verticais). Esses múltiplos reais são um fenômeno natural/criação de um Deus bom ou são uma estrutura artificial/ criada pelo demiurgo ou pelos administradores da Matrix (arcontes) na qual estamos presos? 

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Joo-Ho Bong, o diretor do filme Okja, diz que virou vegano – por dois meses – por ocasião das visitas que fizera em matadouros como parte do processo de pré-produção do filme. Alegou ainda, que foi particularmente o cheiro que o abalou (talvez porque as imagens já estão disponíveis há tempos para quem quiser vê-las, né – a novidade é o cheiro). Dois meses depois do trauma, ele voltou a comer carne, não sem algum sentimento de culpa.
Daí já se nota o utopismo e o otimismo ontológico da militância vegana/vegetariana: mesmo não raro desprezando o ser humano, ela geralmente acredita (ou ao menos acreditava há alguns anos, talvez não acredite mais) que, se as pessoas soubessem o que ocorre nos matadouros (se eles não fossem escondidos do escrutínio público), elas deixariam de comer carne. Joo-Ho Bong, mesmo tendo uma experiência completa de imersão e mesmo dirigindo um filme sobre o tema, persistiu na necrofagia.
A impressão que eu tenho é que o roteiro do filme foi escrito antes da palavra do ano de 2016 se tornar “pós-verdade”, pois nele os militantes defensores dos animais acreditam que as pessoas vão parar de comer carne se souberem dos horrores envolvidos em sua produção (crença desmentida posteriormente pela grande empresária, que diz, com razão, que se for barato as pessoas comprarão), sendo que isso sequer ocorreu com o diretor do filme...
Por falar no assunto, achei boba essa escolha de “pós-verdade” como a palavra de 2016, só por causa da traumática vitória de Trump. Mais uma vez, utopismo e otimismo ingênuo: “pós-verdade” (ou “hipocrisia”, para quem dispensa o neologismo redundante) não é a palavra de 2016, mas a da de toda história humana.

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Sobre a irrealidade.

"Sofremos: o mundo exterior começa a existir...; sofremos demasiado: ele desaparece. A dor só o suscita para desmascarar sua irrealidade." (Cioran, em Silogismos da amargura)

Há um tempo que eu venho notando que a sensação de irrealidade – abordada várias vezes no Outsider à beira do abismo – é algo bem mais corriqueira do que eu pensava. Antes, eu achava que era algo que só poucos malucos sentiam (incluso eu, é claro), mas com o tempo fui notando-a repetidamente em toda parte. Muitos filmes abordam o tema sutilmente (por exemplo, no final de “Sobre meninos e lobos”, um filme protagonizados por notórios homens insiders), cheguei a descrever a sensação para uma insider e ela disse que já aconteceu com ela. Acontece com todo mundo, ainda mais em uma época histórica em que estamos afogados em simulacros – e estaremos cada vez mais. Ela está mesmo na origem do pensamento religioso (e portanto do utopismo também).
Será a sensação de irrealidade mero mecanismo de defesa do ego – diante da dor, uma forma de lidar com ela é negando-a, achando-a irreal? Ou serão esses momentos de estupor os nossos momentos mais lúcidos?

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Zilhões de googolplex.

“Às vezes conseguimos nos esquecer em alguma coisa; mas como nos esquecermos no próprio mundo? Esta impossibilidade é a definição da dor. Aquele que é atingido por ela não se curará nunca, mesmo que o universo mudasse completamente. Só seu coração deveria mudar, mas é imutável; também para ele, existir só tem um sentido: mergulhar no sofrimento – até que o exercício de uma cotidiana nirvanização eleve-o à percepção da irrealidade...” (Cioran, em Breviário de composição)

Nessa terça-feira (18/07) lá fui eu fazer os exames solicitados pelo médico em 03/07 (conforme mencionado aqui antes). Tinha que ficar em jejum, acordar cedo (sendo que eu demorei para pegar no sono), e também me enfiaram um “acesso” para injetar contrastes em mim (para ressonância magnética e para tomografia computadorizada). Ainda por cima, eu estava com laringite (tive inclusive que ir no hospital da quinta-feira para me receitarem antibióticos). Inverno... Tudo uma merda.
Enfim, todo esse contexto de sofrimento e de privação me permitiu ter uma experiência quase mística.
Um dos contrastes injetados foi iodo, e ele deu uma espécie de “barato” (deu para senti-lo chegar à aorta e se espalhar pelo corpo). Se iodo dá isso, imagine-se heroína. É compreensível que esses rockstars se matem – provavelmente nada nesse mundo pode ser o bastante para quem conheceu as delícias da heroína (mal o é para mim, que nem a usei).
Enquanto eu esperava numa maca para o segundo exame (no qual injetaram outro contraste, mas que não deu barato), fiquei deitado por um tempo que pareceu interminável. Todo aquele artificialismo – máquinas caras, telas de LCD, técnicos uniformizados, pinturas abstratas na parede – fez-me teletransportar para as savanas. Senti-se na pele dos primeiros hominídeos. Como chegamos a esse ponto de traição de nossa própria natureza animal? A Queda... O ápice da humanidade foi na pré-história...


No segundo exame, enquanto a máquina ficou por 20 minutos apitando diferentes barulhos na minha cabeça (tudo isso para fazer uma mera ressonância magnética do ombro), eu viajei pelo omniverso (não é a primeira vez que isso aconteceu, a primeira rendeu certos manuscritos que eu nunca tive tempo de transcrever, quem sabe um dia eu os transcreva aqui), vi zilhões de googolplex de universos coexistindo simultaneamente. Havia um universo diferente para cada estado quântico de cada partícula desse nosso universo. Todas as possibilidades aconteciam ao mesmo tempo. Bilhões de Duans Conrados Castros, um infinitesinalmente diferente dos outros – mas, como são tantos, havia uns totalmente diferentes do que eu sou, uns correspondiam aos meus ideais, outros eram ainda piores do que eu sou (segundo os mesmos critérios).
Enquanto voltava para casa eu pensava: adiantaria alguma coisa, em termos de aplacar o meu sofrimento, saber que existem milhares de versões mais bem-sucedidas de mim, mas que também existem milhares de versões menos bem-sucedidas, fora as trilhões de Terras onde eu nunca cheguei a existir? Concluí que é uma pergunta utópica, mera tentativa dos meus instintos de autopreservação de tornar o meu sofrimento relativo: se eu estou preso nesse corpo e nesse universo, pouco importa se existem outros ou não. Toda minha existência se esgota aqui. É contraproducente tentar fugir do sofrimento com esses delírios utópicos.

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A via da perdição.

"O problema do mal só perturba realmente alguns delicados, alguns céticos, revoltados pela própria maneira como o crente se conforma com ele ou como o escamoteia. É para esses então que, em primeiro lugar, se dirigem as teodiceias, tentativas de humanizar Deus, acrobacias desesperadas que fracassam e se comprometem no seu próprio terreno, desmentidas a cada instante pela experiência. Embora procurem convencê-los de que a Providência é justa, não o conseguem." (Cioran, em Ensaio sobre o pensamento reacionário)

Ainda em 18/07, enquanto eu estava na maca no ínterim entre os dois exames, uma enfermeira veio falar comigo. Perguntou sobre a lesão muscular fruto de uma tentativa de suicídio há quase 6 anos atrás. Aí ela me tratou como me trataram as pessoas na época em que tentei me matar: de forma maternal.
Perguntou por que eu tentara me matar, se fora por amor. Eu disse que nunca me senti partícipe desse mundo... Ela disse que ela também não se sente (olha aí a sensação de irrealidade onipresente), fez breves considerações sobre a burocracia e a reificação (sem usar essas palavras, claro).
Aí então perguntou se eu costumava ler, já imaginei onde ela queria chegar. Eu disse que já li mais no passado, mas que não me interessava muito no momento por leituras. Perguntou se eu já tinha lido a Bíblia (sim, foi aí que eu imaginei que ela iria chegar), eu disse que já, ela ficou surpresa (oh pessoalzinho previsível, hein) e disse que a Bíblia é um livro "profundo" (rs). Nem lembro como a conversa acabou, mas não cortei o assunto, nem fui grosseiro, nem fiz promessa nenhuma – dessa vez, diferentemente do que ocorrera em 03/07, eu me lembrei de vestir a máscara social. Simplesmente ficou por isso mesmo. E então ela voltou ao trabalho dela – afinal, estava ali para trabalhar né, não para se compadecer dos outros e evangelizá-los. Todos querem distribuir receitas de felicidade... Senti-me em The Sims – dentro do jogo, falando com um Sims, rodeado de simulações de seres humanos. Novamente, irrealidade.
No primeiro filme da trilogia Matrix, certa hora, isso no começo (antes de Neo tomar a pílula vermelha), Morpheus fala para ele algo assim (estou citando de cabeça, não vou me dar ao trabalho de achar a citação exata): “eu sei por que você está aqui, Neo, você está aqui porque sabe que existe algo de errado com esse mundo, e quer saber o que é.” No caso, o “saber o que é” passava por tomar a pílula vermelha. Ora, todas as pessoas sabem que algo vai muito mal nesse mundo (tanto que se identificam com o filme), e uma das funções da ideologia é dar uma explicação/justificação para a presença do mal no mundo. Mas quantas pessoas se afundam na busca desse porquê ao ponto de destruírem a si próprias? Quantas vão tão longe nessa busca ao ponto de não chegarem a lugar algum, exceto os próprios paradoxos? Quantas estão dispostas a pagar o preço de se tomar a pílula vermelha? O preço de ir tão longe que todo o senso comum (incluído aí a “profundidade da Bíblia”), e com ele a própria vida, se esfumaça diante de seus olhos? Esses, que apenas chegam a essas revelações consentindo com a própria destruição, são os verdadeiros outsiders, e, como tal, não servem mais à autopoiese da espécie.
Todo insider é um potencial outsider – o que lhe falta para sê-lo é deixar-se levar por essa via de perdição. Mas não se deixa, pois seus instintos de autopreservação são fortes demais em comparação com o desejo de entender: instintivamente notam o perigo da busca pela verdade, e se afastam rumo ao conforto e a segurança da ignorância.


sábado, 8 de julho de 2017

XXIII

18/06/2017


Perdidos em suas utopias, às vezes é preciso relembrar ao pessoal de humanas o óbvio: um sistema sígnico não gera pulsões, o máximo que ele pode fazer é tentar canalizá-las; elas têm sua origem não no domínio da cultura, mas no domínio dos instintos corporais. Pretender reduzir as questões de gênero e de sexualidade à cultura é tão reificante quanto pretender reduzi-las à biologia.

03/07/2017

Hoje de manhã, fui num médico no qual eu nunca tinha ido. Como eu tinha acabado de acordar e era segunda-feira, esqueci de colocar a minha “máscara social”. Basicamente tratei ele sem aquela circunspeção/submissão que o bom-senso recomenda ao se lidar com “autoridades” em geral, e ainda mais num primeiro encontro com elas. Resultado: o sujeito achou que eu estava drogado e ainda recomendou que eu fosse em um psicólogo (sendo que eu já recebi alta de duas psicólogas diferentes, rsss), e ainda deu a entender que em consultas futuras (terei que voltar lá para levar resultados de exames) vai insistir para que eu vá em algum psiquiatra... A mentira é a base da sociabilidade e das “boas maneiras”.

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Não há como comprometer-se simultaneamente com a verdade e com a vida. Quem escolhe comprometer-se com a vida escolhe, também, iludir-se. Qualquer discurso comprometido em defender a vida tal como é, ou que a critica para propor-lhe melhorias, está inevitavelmente eivado de ilusões.

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Quanto mais se deseja, mas se sofre. E quanto mais se sofre, mais se busca inventar sentidos morais para justificar o sofrimento – e é aí que entra o pensamento religioso. Quanto menos desejamos, menos precisamos da religião (ou da utopia política) como muleta existencial. Nada é mais depressor do que o otimismo, pois ele alimenta a esperança, e essa alimenta o desejo e a sua consequente frustração, aumentando assim o sofrimento.

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Não é o fato do mundo ser uma merda que nos faz sofrer, mas sim é a nossa permanente recusa em nos resignarmos ao que o mundo é. Quanto mais temos esperança de que as coisas vão mudar, mais quebramos a cara e sofremos.

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Antes mesmo de uma religião se tornar a principal religião de um povo, ela já destruiu todo o espírito da doutrina original que a inspirou, já o aniquilou para tentar agradar à massa ignara, já escolheu servir a Mamon, em detrimento da causa que iniciou o movimento. Dalai Lama não tem mais ligação alguma com o que o budismo foi em seu início.


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Que diferença há entre um monge de verdade (se que é ainda existe algum) e um atleta olímpico? O monge acha que está transcendendo esse mundo e, em vez de ser sustentado por grandes corporações, é sustentado por outras pessoas que também acreditam nessa possibilidade de transcendência e que veem no monge uma prova da veracidade dessa possibilidade. Fora isso, ambos são tarados, viciados até o masoquismo.

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Cedo ou tarde, todos precisam encarar as próprias limitações.

06/07/2017 

Boa parte das pessoas obcecadas em ganhar dinheiro e em ter sucesso profissional ignora os custos de oportunidades dessas suas taras, embora costumem calcular os custos de oportunidade de quase tudo. Sem essa cegueira, sua eficácia iria ralo abaixo.

07/07/2017

Assim como eu não sou mais a pessoa que tentou se matar em 2011, não sou também a pessoa que se encheu de tatuagens em 2013 e 2014. A ideia da permanência de uma identidade que progride no tempo é uma ilusão cultural e dependente de memórias viesadas. O próprio “eu” no aqui e no agora não passa de uma reificação útil à autopoiese, de uma máscara para uma miríade de redes neurais em interações cibernéticas, não raro conflitantes (daí as contradições que todos apresentamos).

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processo de autoconversão e o sofrimento político.
Quando uma pessoa descobre-se posicionada fora do senso comum – descobre-se, por exemplo, incapaz de acreditar em Deus, ou com desejos homossexuais, ou com um desejo de não ter filhos, ou com um desejo de não comer carne por amor aos animais, ou com uma aversão à violência intrínseca à semiótica da masculinidade, etc. –, ela precisa refazer seu mapeamento cognitivo, pois o mesmo, construído cumulativamente em interação com o senso comum, está eivado de crenças que ferem esse posicionamento recém-descoberto e com o qual a pessoa decidiu comprometer-se.
É esse processo de reforma do mapeamento cognitivo que eu estou chamando aqui de “autoconversão”, e ele pode levar meses, ou mesmo anos, para estar concluído (a se depender a sagacidade de pessoa, do tempo e da energia que ela dedica à reforma, etc.). Enquanto esse processo não estiver concluído, repetidamente a pessoa se vê na obrigação de ficar reafirmando para si própria a sua posição toda vez que ela se depara com alguém que não a adota – e como a posição em questão fere o senso comum, isso ocorre o tempo todo. A pessoa, então, fica em um estado quase permanente de tensão, pronta o tempo todo para se defender dos ataques vindos do mundo exterior – não raro, os ataques sequer são, stricto sensu, dirigidos à pessoa: ela se defende da simples existência, no senso comum, de uma ideologia de legitimação do posicionamento que ela não adota, ao qual ela recentemente descobriu-se opositora.
É nesse processo defensivo – parte integrante do processo de autoconversão – que a pessoa frequentemente cai na armadilha de transformar sua posição em uma ideologia política: quer converter o mundo ao ateísmo (“à razão”), quer acabar com qualquer sinal de aversão a homossexuais (ou mesmo com "todas as formas de preconceito”, rs), quer que todos deixem de procriar, não descansará enquanto um único animal ainda estiver sofrendo para o prazer humano ou enquanto uma única mulher ainda estiver sofrendo para o prazer masculino, etc. Embora essa politização possa ser útil como parte do processo de autoconversão, não raro ela se transforma, do ponto de vista da economia do sofrimento, em uma armadilha: a pessoa pode acabar se habituando ao proselitismo e, mesmo quando já concluiu a autoconversão, continuar por isso a se torturar pelo fato de o mundo não se curvar ao seu novo deus, ao seu projeto de salvação. Por exemplo, conheço gente que está há quase 50 anos sofrendo porque o mundo permanece a comer carne.
Para aqueles que, como eu, priorizam a diminuição do sofrimento pessoal, é preciso muita cautela com essa politização – embora ela possa ser útil como parte do processo de autoconversão, ela pode facilmente tornar-se uma armadilha, ser reprodutora de sofrimento pessoal. Ora, não se decidiu comprometer-se com esse posicionamento outsider justamente para diminuir o sofrimento, já que é sofrido violentar a si mesmo ao ir contra sua própria natureza para agradar aos outros? É comum que essa politização seja abandonada quando a pessoa atinge a autoconversão: cansada de “dar murro em ponta de faca” e já estando o mapeamento cognitivo devidamente reformado, a pessoa resigna-se ao fato de o mundo não pensar como ela pensa. Não sofre mais por ver-se repetidamente em oposição ao mundo. Tal como um cu já acomodado ao caralho que o fode, torna-se insensível ao não lhe oferecer mais resistência. Mas em outros casos, a pessoa, masoquista, decide-se por passar o resto da vida a sofrer por uma causa perdida.
Não é só o masoquismo que mantém esse proselitismo vão, é, também, o prazer decorrente de imaginar-se melhor que os outros – prazer que, ao reconfortar o ego, serve-lhe de mecanismo de proteção. Crendo-se “parte da solução e não do problema” (o que já pressupõe a crença utópica de que existe uma solução para o impasse humano), a pessoa não precisa mais de autocrítica, não precisa mais aprimorar-se (exceto quando o aprimoramento é entendido como um afundar-se ainda mais na dita ideologia política): é um mocinho rodeado de vilões, é um agente do bem rodeado pelo mal. Em uma palavra, é superior. Embora sofra por estar em guerra permanente com o mundo, goza por acreditar ser-lhe superior, e recorre inclusive a essa ilusão de superioridade como estratégia para esconder de si mesma o reconhecimento de outros problemas que possui (até porque, se os reconhecesse, teria que vilanizar a si própria, e acreditar-se digna de castigo, dado que é isso que pensa dos outros). Nesse ponto, a posição de diferente torna-se fonte de desperdício conspícuo, e a pessoa torna-se sadomasoquista.
Quanto mais traumático o processo de conversão (trauma inclusive diretamente proporcional à resistência apresentada pelo círculo de relações da pessoa ao posicionamento por ela adotado), maior a probabilidade da pessoa transformar-se em proselitista de uma ideologia-utopia política.
Já eudemonistas, como eu, simplesmente não sofrem por ideais políticos.