sábado, 8 de julho de 2017

XXIII

18/06/2017


Perdidos em suas utopias, às vezes é preciso relembrar ao pessoal de humanas o óbvio: um sistema sígnico não gera pulsões, o máximo que ele pode fazer é tentar canalizá-las; elas têm sua origem não no domínio da cultura, mas no domínio dos instintos corporais. Pretender reduzir as questões de gênero e de sexualidade à cultura é tão reificante quanto pretender reduzi-las à biologia.

03/07/2017

Hoje de manhã, fui num médico no qual eu nunca tinha ido. Como eu tinha acabado de acordar e era segunda-feira, esqueci de colocar a minha “máscara social”. Basicamente tratei ele sem aquela circunspeção/submissão que o bom-senso recomenda ao se lidar com “autoridades” em geral, e ainda mais num primeiro encontro com elas. Resultado: o sujeito achou que eu estava drogado e ainda recomendou que eu fosse em um psicólogo (sendo que eu já recebi alta de duas psicólogas diferentes, rsss), e ainda deu a entender que em consultas futuras (terei que voltar lá para levar resultados de exames) vai insistir para que eu vá em algum psiquiatra... A mentira é a base da sociabilidade e das “boas maneiras”.

*

Não há como comprometer-se simultaneamente com a verdade e com a vida. Quem escolhe comprometer-se com a vida escolhe, também, iludir-se. Qualquer discurso comprometido em defender a vida tal como é, ou que a critica para propor-lhe melhorias, está inevitavelmente eivado de ilusões.

*

Quanto mais se deseja, mas se sofre. E quanto mais se sofre, mais se busca inventar sentidos morais para justificar o sofrimento – e é aí que entra o pensamento religioso. Quanto menos desejamos, menos precisamos da religião (ou da utopia política) como muleta existencial. Nada é mais depressor do que o otimismo, pois ele alimenta a esperança, e essa alimenta o desejo e a sua consequente frustração, aumentando assim o sofrimento.

*

Não é o fato do mundo ser uma merda que nos faz sofrer, mas sim é a nossa permanente recusa em nos resignarmos ao que o mundo é. Quanto mais temos esperança de que as coisas vão mudar, mais quebramos a cara e sofremos.

*

Antes mesmo de uma religião se tornar a principal religião de um povo, ela já destruiu todo o espírito da doutrina original que a inspirou, já o aniquilou para tentar agradar à massa ignara, já escolheu servir a Mamon, em detrimento da causa que iniciou o movimento. Dalai Lama não tem mais ligação alguma com o que o budismo foi em seu início.


*

Que diferença há entre um monge de verdade (se que é ainda existe algum) e um atleta olímpico? O monge acha que está transcendendo esse mundo e, em vez de ser sustentado por grandes corporações, é sustentado por outras pessoas que também acreditam nessa possibilidade de transcendência e que veem no monge uma prova da veracidade dessa possibilidade. Fora isso, ambos são tarados, viciados até o masoquismo.

*

Cedo ou tarde, todos precisam encarar as próprias limitações.

06/07/2017 

Boa parte das pessoas obcecadas em ganhar dinheiro e em ter sucesso profissional ignora os custos de oportunidades dessas suas taras, embora costumem calcular os custos de oportunidade de quase tudo. Sem essa cegueira, sua eficácia iria ralo abaixo.

07/07/2017

Assim como eu não sou mais a pessoa que tentou se matar em 2011, não sou também a pessoa que se encheu de tatuagens em 2013 e 2014. A ideia da permanência de uma identidade que progride no tempo é uma ilusão cultural e dependente de memórias viesadas. O próprio “eu” no aqui e no agora não passa de uma reificação útil à autopoiese, de uma máscara para uma miríade de redes neurais em interações cibernéticas, não raro conflitantes (daí as contradições que todos apresentamos).

*

processo de autoconversão e o sofrimento político.
Quando uma pessoa descobre-se posicionada fora do senso comum – descobre-se, por exemplo, incapaz de acreditar em Deus, ou com desejos homossexuais, ou com um desejo de não ter filhos, ou com um desejo de não comer carne por amor aos animais, ou com uma aversão à violência intrínseca à semiótica da masculinidade, etc. –, ela precisa refazer seu mapeamento cognitivo, pois o mesmo, construído cumulativamente em interação com o senso comum, está eivado de crenças que ferem esse posicionamento recém-descoberto e com o qual a pessoa decidiu comprometer-se.
É esse processo de reforma do mapeamento cognitivo que eu estou chamando aqui de “autoconversão”, e ele pode levar meses, ou mesmo anos, para estar concluído (a se depender a sagacidade de pessoa, do tempo e da energia que ela dedica à reforma, etc.). Enquanto esse processo não estiver concluído, repetidamente a pessoa se vê na obrigação de ficar reafirmando para si própria a sua posição toda vez que ela se depara com alguém que não a adota – e como a posição em questão fere o senso comum, isso ocorre o tempo todo. A pessoa, então, fica em um estado quase permanente de tensão, pronta o tempo todo para se defender dos ataques vindos do mundo exterior – não raro, os ataques sequer são, stricto sensu, dirigidos à pessoa: ela se defende da simples existência, no senso comum, de uma ideologia de legitimação do posicionamento que ela não adota, ao qual ela recentemente descobriu-se opositora.
É nesse processo defensivo – parte integrante do processo de autoconversão – que a pessoa frequentemente cai na armadilha de transformar sua posição em uma ideologia política: quer converter o mundo ao ateísmo (“à razão”), quer acabar com qualquer sinal de aversão a homossexuais (ou mesmo com "todas as formas de preconceito”, rs), quer que todos deixem de procriar, não descansará enquanto um único animal ainda estiver sofrendo para o prazer humano ou enquanto uma única mulher ainda estiver sofrendo para o prazer masculino, etc. Embora essa politização possa ser útil como parte do processo de autoconversão, não raro ela se transforma, do ponto de vista da economia do sofrimento, em uma armadilha: a pessoa pode acabar se habituando ao proselitismo e, mesmo quando já concluiu a autoconversão, continuar por isso a se torturar pelo fato de o mundo não se curvar ao seu novo deus, ao seu projeto de salvação. Por exemplo, conheço gente que está há quase 50 anos sofrendo porque o mundo permanece a comer carne.
Para aqueles que, como eu, priorizam a diminuição do sofrimento pessoal, é preciso muita cautela com essa politização – embora ela possa ser útil como parte do processo de autoconversão, ela pode facilmente tornar-se uma armadilha, ser reprodutora de sofrimento pessoal. Ora, não se decidiu comprometer-se com esse posicionamento outsider justamente para diminuir o sofrimento, já que é sofrido violentar a si mesmo ao ir contra sua própria natureza para agradar aos outros? É comum que essa politização seja abandonada quando a pessoa atinge a autoconversão: cansada de “dar murro em ponta de faca” e já estando o mapeamento cognitivo devidamente reformado, a pessoa resigna-se ao fato de o mundo não pensar como ela pensa. Não sofre mais por ver-se repetidamente em oposição ao mundo. Tal como um cu já acomodado ao caralho que o fode, torna-se insensível ao não lhe oferecer mais resistência. Mas em outros casos, a pessoa, masoquista, decide-se por passar o resto da vida a sofrer por uma causa perdida.
Não é só o masoquismo que mantém esse proselitismo vão, é, também, o prazer decorrente de imaginar-se melhor que os outros – prazer que, ao reconfortar o ego, serve-lhe de mecanismo de proteção. Crendo-se “parte da solução e não do problema” (o que já pressupõe a crença utópica de que existe uma solução para o impasse humano), a pessoa não precisa mais de autocrítica, não precisa mais aprimorar-se (exceto quando o aprimoramento é entendido como um afundar-se ainda mais na dita ideologia política): é um mocinho rodeado de vilões, é um agente do bem rodeado pelo mal. Em uma palavra, é superior. Embora sofra por estar em guerra permanente com o mundo, goza por acreditar ser-lhe superior, e recorre inclusive a essa ilusão de superioridade como estratégia para esconder de si mesma o reconhecimento de outros problemas que possui (até porque, se os reconhecesse, teria que vilanizar a si própria, e acreditar-se digna de castigo, dado que é isso que pensa dos outros). Nesse ponto, a posição de diferente torna-se fonte de desperdício conspícuo, e a pessoa torna-se sadomasoquista.
Quanto mais traumático o processo de conversão (trauma inclusive diretamente proporcional à resistência apresentada pelo círculo de relações da pessoa ao posicionamento por ela adotado), maior a probabilidade da pessoa transformar-se em proselitista de uma ideologia-utopia política.
Já eudemonistas, como eu, simplesmente não sofrem por ideais políticos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário