11/09/2016 (encontrado e revisado em 17/06/2017)
Sobre a
vida e a morte.
Somos máquinas autopoiéticas fruto de um processo de seleção natural de 4 bilhões de anos. Nossas individualidades e alteridades são construídas em processos multidirecionais e cumulativos nos quais há interação de fatores biológicos, psicológicos e culturais (nosso material genético, a nutrição de nossas mães durante a gravidez, a nossa nutrição desde a primeira infância, a relação com nossos pais (a qual por sua vez inclui a psicologia dos nossos pais com seus vícios e virtudes), a cultura da sociedade em que vivemos e crescemos, os resultados cumulativos das decisões que tomamos e das decisões que outros tomam e nos afetam, etc.). Essas individualidades e alteridades podem ser suficientemente explicadas pelas ciências biológicas e sociais, de tal forma que é desnecessário recorrer ao conceito de “alma” para explicá-las (no passado da humanidade – antes de século XX – realmente não tínhamos conhecimento científico suficiente sobre a natureza e sobre nós mesmos para entendermos esses processos, de tal forma que o conceito de alma de fato soava como uma boa explicação).
Portanto, ao morrermos, essa nossa identidade e essa nossa
alteridade – enquanto construções bio-psico-sociais – desaparecem com o fim da
atividade autopoiética do nosso corpo e de nosso cérebro. A informação é
destruída com a metamorfose de sua base material – da mesma forma que o
conteúdo de um texto escrito com tinta em um papel se perde se o papel é
queimado, ou rasgado, ou molhado, ou comido por traças, etc.
No domínio da natureza, a morte em geral é decorrente da
“guerra eterna” na qual os seres se entredevoram na competição por matéria e
energia para realizarem a sua própria autopoiese. No passado (antes da invenção
dos antibióticos), seres humanos podiam morrer em função de um único ferimento:
já era suficiente para sofrerem uma
infecção (ou seja, para seus corpos serem atacados por bactérias que os usam
para fazerem a sua própria autopoiese). A morte por velhice – tanto de animais
quanto de humanos – é algo que só vemos na sociedade humana, a qual, mediante
divisão social do trabalho e emprego de tecnologias, consegue produzir uma
quantidade tal de valores de uso (os “bens”) que permite sustentar com conforto
os seres mais fracos (incluindo os que estão envelhecendo), e assim a luta
permanente pela autopoiese é suavizada. É nesse ambiente mais confortável que o
envelhecimento surge como fenômeno estatisticamente relevante. Na natureza,
basta o indivíduo perder o viço da mocidade para ser devorado vivo por seus predadores.
O motivo pelo qual envelhecemos está sendo investigado pela
ciência, a explicação que é considerada mais razoável pelos cientistas é a de
que existem mecanismo internos à célula (em particular o encurtamento dos telômeros)
que buscam restringir seu processo de autopoiese para diminuir a possibilidade
desse processo sair do controle – quando uma célula passa a se reproduzir
descontroladamente isso é conhecido como “câncer”. Desse ponto de vista, a
morte por envelhecimento seria um subproduto dos mecanismos celulares que
diminuem a probabilidade de cânceres aparecerem. Isso faz bastante sentido
quando notamos que a autopoiese é o em-si de toda a cibernética molecular
conhecida como “vida”.
O envelhecimento – e, numa perspectiva mais ampla, a degradação
de qualquer coisa no tempo – é consequência, em última instância, do atrito
(sem o qual obviamente a própria vida é impossível).
Nossos cérebros têm toda uma cibernética de produção do
nosso ego, de nosso self, de nossa alteridade, de nossa identidade (estudados
pelas neurociências e pela psicologia). Usualmente nós entendemos,
interpretamos, como sendo o “eu” justamente aquilo que nos diferencia de nossos
semelhantes (a nossa alteridade). Se isso for o “eu”, então claramente a morte
é a sua extinção, assim como a vida é seu processo de construção (em especial
na infância e na adolescência) e autopoiese, em luta permanente contra a morte,
a qual por fim sempre vence. Porém, se considerarmos que essa noção de eu (ego)
é estrutural da consciência como produzida pelo cérebro, esse “eu” é o mesmo em
todos os cérebros (é idêntico em todos os seres animais, que são os dotados de
consciência). Com o aumento da consciência (produzida pelo cérebro e aumentada
em proporção ao aumento do cérebro e com a cumulatividade cultural) atinge-se a
consciência da consciência – a lucidez (característica, junto com o polegar
opositor, que distingue os humanos dos demais animais). De forma geral, esse
“eu” autoconsciente é o mesmo em todos os seres humanos, e os processos envolvendo
esse eu (processos “subjetivos”, que ocorrem em nossas cabeças, em nossos
cérebros) constituem parte daquilo que chamamos de “humanidade compartilhada”
(a “condição humana”, a “natureza humana”).
Enquanto estrutural da espécie, esse “eu” autoconsciente
sobrevive à morte de cada um dos humanos, assim como já existia antes de cada
um deles existir. Ele desaparece com a espécie em um sentido estrito (enquanto
eu autoconsciente) e com a extinção da animalidade em um sentido amplo
(enquanto eu consciente).
Assim como a vida surgiu e evoluiu na Terra ao longo de
bilhões de anos, é bem possível que esse fenômeno tenha ocorrido e venha a
ocorrer outras vezes em outros planetas que tenham condições análogas à da
Terra. Por mais que seja improvável que essas condições ocorram todas juntas
(ao menos as necessárias para desenvolver vida multicelular e animais
vertebrados), o universo é tão grande que é bem provável que essas condições se
repitam e a vida eventualmente imerja da esterilidade cósmica, sendo a matéria
novamente lançada no pesadelo da insônia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário