sexta-feira, 16 de junho de 2017

XXII


11/09/2016 (encontrado e revisado em 17/06/2017)


Sobre a vida e a morte.



Somos máquinas autopoiéticas fruto de um processo de seleção natural de 4 bilhões de anos. Nossas individualidades e alteridades são construídas em processos multidirecionais e cumulativos nos quais há interação de fatores biológicos, psicológicos e culturais (nosso material genético, a nutrição de nossas mães durante a gravidez, a nossa nutrição desde a primeira infância, a relação com nossos pais (a qual por sua vez inclui a psicologia dos nossos pais com seus vícios e virtudes), a cultura da sociedade em que vivemos e crescemos, os resultados cumulativos das decisões que tomamos e das decisões que outros tomam e nos afetam, etc.). Essas individualidades e alteridades podem ser suficientemente explicadas pelas ciências biológicas e sociais, de tal forma que é desnecessário recorrer ao conceito de “alma” para explicá-las (no passado da humanidade – antes de século XX – realmente não tínhamos conhecimento científico suficiente sobre a natureza e sobre nós mesmos para entendermos esses processos, de tal forma que o conceito de alma de fato soava como uma boa explicação).

Portanto, ao morrermos, essa nossa identidade e essa nossa alteridade – enquanto construções bio-psico-sociais – desaparecem com o fim da atividade autopoiética do nosso corpo e de nosso cérebro. A informação é destruída com a metamorfose de sua base material – da mesma forma que o conteúdo de um texto escrito com tinta em um papel se perde se o papel é queimado, ou rasgado, ou molhado, ou comido por traças, etc.

No domínio da natureza, a morte em geral é decorrente da “guerra eterna” na qual os seres se entredevoram na competição por matéria e energia para realizarem a sua própria autopoiese. No passado (antes da invenção dos antibióticos), seres humanos podiam morrer em função de um único ferimento: já era suficiente para  sofrerem uma infecção (ou seja, para seus corpos serem atacados por bactérias que os usam para fazerem a sua própria autopoiese). A morte por velhice – tanto de animais quanto de humanos – é algo que só vemos na sociedade humana, a qual, mediante divisão social do trabalho e emprego de tecnologias, consegue produzir uma quantidade tal de valores de uso (os “bens”) que permite sustentar com conforto os seres mais fracos (incluindo os que estão envelhecendo), e assim a luta permanente pela autopoiese é suavizada. É nesse ambiente mais confortável que o envelhecimento surge como fenômeno estatisticamente relevante. Na natureza, basta o indivíduo perder o viço da mocidade para ser devorado vivo por seus predadores.

O motivo pelo qual envelhecemos está sendo investigado pela ciência, a explicação que é considerada mais razoável pelos cientistas é a de que existem mecanismo internos à célula (em particular o encurtamento dos telômeros) que buscam restringir seu processo de autopoiese para diminuir a possibilidade desse processo sair do controle – quando uma célula passa a se reproduzir descontroladamente isso é conhecido como “câncer”. Desse ponto de vista, a morte por envelhecimento seria um subproduto dos mecanismos celulares que diminuem a probabilidade de cânceres aparecerem. Isso faz bastante sentido quando notamos que a autopoiese é o em-si de toda a cibernética molecular conhecida como “vida”.

O envelhecimento – e, numa perspectiva mais ampla, a degradação de qualquer coisa no tempo – é consequência, em última instância, do atrito (sem o qual obviamente a própria vida é impossível).

Nossos cérebros têm toda uma cibernética de produção do nosso ego, de nosso self, de nossa alteridade, de nossa identidade (estudados pelas neurociências e pela psicologia). Usualmente nós entendemos, interpretamos, como sendo o “eu” justamente aquilo que nos diferencia de nossos semelhantes (a nossa alteridade). Se isso for o “eu”, então claramente a morte é a sua extinção, assim como a vida é seu processo de construção (em especial na infância e na adolescência) e autopoiese, em luta permanente contra a morte, a qual por fim sempre vence. Porém, se considerarmos que essa noção de eu (ego) é estrutural da consciência como produzida pelo cérebro, esse “eu” é o mesmo em todos os cérebros (é idêntico em todos os seres animais, que são os dotados de consciência). Com o aumento da consciência (produzida pelo cérebro e aumentada em proporção ao aumento do cérebro e com a cumulatividade cultural) atinge-se a consciência da consciência – a lucidez (característica, junto com o polegar opositor, que distingue os humanos dos demais animais). De forma geral, esse “eu” autoconsciente é o mesmo em todos os seres humanos, e os processos envolvendo esse eu (processos “subjetivos”, que ocorrem em nossas cabeças, em nossos cérebros) constituem parte daquilo que chamamos de “humanidade compartilhada” (a “condição humana”, a “natureza humana”).

Enquanto estrutural da espécie, esse “eu” autoconsciente sobrevive à morte de cada um dos humanos, assim como já existia antes de cada um deles existir. Ele desaparece com a espécie em um sentido estrito (enquanto eu autoconsciente) e com a extinção da animalidade em um sentido amplo (enquanto eu consciente).

Assim como a vida surgiu e evoluiu na Terra ao longo de bilhões de anos, é bem possível que esse fenômeno tenha ocorrido e venha a ocorrer outras vezes em outros planetas que tenham condições análogas à da Terra. Por mais que seja improvável que essas condições ocorram todas juntas (ao menos as necessárias para desenvolver vida multicelular e animais vertebrados), o universo é tão grande que é bem provável que essas condições se repitam e a vida eventualmente imerja da esterilidade cósmica, sendo a matéria novamente lançada no pesadelo da insônia.

Como ocorreu essa emergência da primeira molécula autorreplicante ainda não está clara para a ciência. Os cientistas tendem a considerar ela como um evento aleatório. Simulações em laboratório da “sopa primordial” indicam que sob certas condições essas moléculas orgânicas que se replicam, se auto-põem, passam a surgir. Eu prefiro ver essa emergência como uma consequência natural de um universo “biocêntrico” no qual o em-si, o Atman, é uma “vontade de vida”, um “querer-viver”, o qual já é o em-si das próprias forças físicas e que, ao atingir, em nós humanos, a autoconsciência se autodenomina “vontade”. Nesse sentido, essa “vontade” pode ser vista como o centro, o em-si, do nosso “eu”, e cada um de nós como um fragmento autoconsciente e particular desse em-si do próprio universo. Mas, de repente, foi um evento aleatório mesmo... 

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