sábado, 3 de junho de 2017

XX

03/06/2017

Transcrição de áudios que fiz sobre Schopenhauer e schopenhaurianos em março de 2017.

(O texto está meio confuso porque é uma transcrição e resumo de vários áudios; não me dei ao trabalho de transformar em um texto redondinho porque não vale a pena o esforço, já que praticamente ninguém vai ler mesmo.)

O conceito de “vontade” em Schopenhauer possui muitas funções explicativas diferentes. Os progressos que as ciências naturais e sociais fizeram desde 1819 esvaziam, uma a uma, todas essa funções.

Diferentemente do que ocorria na época de Schopenhauer, hoje em dia há ótimas explicações para a caracterologia produzidas pelas ciências biológicas e sociais, de tal forma que é totalmente desnecessário e redundante apelar para a metafísica a fim de conseguir alguma explicação mágica e fetichista para o fenômeno da diversidade dos seres e dos comportamentos. Todo o papel que os graus de objetivação da vontade exercem no pensamento único de Schopenhauer estão totalmente ultrapassados diante do conhecimento científico atual. Os avanços das ciências naturais e sociais torna redundante todo esse blá-blá-blá de ideias platônicas que os filósofos ruminam há milênios.

Tanto o antropocentrismo quanto o vitalismo que são tão importantes no pensamento de Schopenhauer estão totalmente arruinados pelos conhecimentos científicos atuais. Atualmente, está mais do que demonstrada a total desnecessidade de se recorrer ao conceito de força vital como categoria explicativa. Já se sabe hoje em dia que os objetos de estudo da biologia são um mero subconjunto dos objetos de estudo da química orgânica.

Schopenhauer diz que a intuição intelectual (autoconsciência) da Vontade como coisa em si ainda se dá no tempo, e portanto ainda é uma representação (e o seu limite), dessa forma ele alega que ainda está preso aos limites do kantismo. O Ser, no tempo, percebe-se como Vontade.

No §60 do Tomo I do “O mundo...” Schopenhauer alega que o corpo é uma paráfrase da vontade: “Ora, o corpo é uma primeira manifestação da vontade, sob as condições determinadas pelo grau e o indivíduo de que se trata; e a vontade desenvolvida no tempo é, por seu lado, apenas a paráfrase do corpo, uma explicação do que ele significa, tanto no seu conjunto como nas suas partes; essa vontade é, portanto, apenas uma revelação da mesma coisa em si de que o corpo é uma primeira forma visível. Podemos, por consequência, dizer, em vez de afirmação da vontade, afirmação do corpo. O tema sobre o qual a vontade, através dos seus diversos atos, executa variações é a pura satisfação das necessidades que, no estado de saúde, resultam necessariamente da própria existência do corpo: o corpo já as exprime; e resumem-se a dois pontos: conservação do indivíduo e propagação da espécie.”

Enquanto Schopenhauer não sabia nem o que é uma porra de um cromossomo, qualquer um que se der ao trabalho de cruzar esse parágrafo com o conhecimento biológico atual vai notar que o papel explicativo que o conceito metafísico de vontade possui aqui é plenamente substituível pela da atividade autopoiética do material genético.

Assim como Schopenhauer recorre aos graus de objetivação da vontade como expediente explicativo das diferenças entre as espécies – diferença de “caráter” num sentido mais amplo –, ele recorreu a eles para explicar também as diferenças de caráter entre as pessoas, embora tenha abertamente admitido que nesse tema sua filosofia não tinha como se aprofundar, pois ele estaria para além da experiência (da experiência só da época dele, parece que ele não percebeu que a ciência iria progredir e escrutinar domínios anteriormente intocados). Esse ponto fraco admitido foi usado por Julius Bahnsen, discípulo de Schopenhauer, numa tentativa de elaborar uma "dialética do real".

Na falta de conceitos melhores, que não existiam na época justamente por causa da ausência do progresso científico, inventou-se esse conceito reificado de Vontade cósmica, esse fetiche, essa corruptela da força vital, para servir de explicação metafísica, de máscara, para uma série de processos causais (as diferenças entre as espécies e entre os indivíduos de uma mesma espécie, os instintos corporais, os dramas psicológicos, etc.) que são totalmente inteligíveis contemporaneamente de forma materialista e simbólica (ou seja, explicados tanto pelas ciências naturais quanto humanas).

Por meio da auto-observação, a parte consciente da consciência percebe como "vontade" o que o inconsciente joga nela. E o inconsciente, por sua vez, não passa de um reflexo dos automatismos instintuais, os quais por sua vez são reflexo da programação genética. Note que essa autopercepção enquanto “vontade” não possui o mesmo sentido que tinha na época de Schopenhauer. É até possível imaginar que existe um impulso irracional e jamais satisfeito que é o em-si da matéria (da energia, já que a matéria é energia) e que passa por uma corrente causal gigantesca até perceber-se a si mesmo em uma consciência humana, mas todo esse processo não tem nada a ver com a metanarrativa idealista construída por Schopenhauer há 200 anos. A própria autopercepção da “vontade” pode ser vista como uma virtualidade, uma representação da consciência para si mesma, epifenomenal em relação à atividade autopiética das proteínas que compõem os organismos. Essa percepção da vontade, mesmo que seja um limite da representação, não é mais ilusória do que todas as outras representações. Schopenhauer, porém, faz dela a separação entre os dois lados do mundo, coloca-a como o limite entre o mundo material e algo que é totalmente diferente dele. Pinçar essa consciência da vontade e colocá-la como a chave interpretativa que releva o segredo do universo é algo, no mínimo, bem temerário à luz do conhecimento atual. Mas, incrivelmente, essa filosofia (e tantas outras mais ultrapassadas ainda do que ela) continua a ser estudada com toda a seriedade por incautos amadores e profissionais.

A aleatoriedade da seleção natural é mais propícia a fundamentar uma visão do mundo pessimista do que um sistema antropocêntrico como o de Schopenhauer.

A minha parte favorita dos textos schopehaurianos – os capítulos §56 a 60 do tomo I e suas continuações no Tomo II – sobrevive em essência se for reescrita à luz da ciência atual. Continua em essência verdadeira, embora a narrativa usada para racionalizar as intuições esteja defasada. Como o próprio Schopenhauer falou sobre Kant, a intuição é verdadeira, mas a demonstração racional dela é falsa.

Todo o progresso das ciências a partir da segunda metade no século XIX descontroem os fundamentos metafísicos da narrativa schopenhauriana e revelam que esses fundamentos são uma reificação, um fetiche. Até é possível que o “em si” do mundo seja um impulso jamais satisfeito, mas a cibernética como ele se manifesta não tem nada a ver com a narrativa construída por Schopenhauer. A única coisa que sobra de legítima na ontologia de Schopenhauer é essa intuição fundamental, mas toda a forma como ele a expôs em um todo orgânico (que ele insiste em não chamar de sistema) já está totalmente defasada à luz do conhecimento científico acumulado nos últimos 200 anos. Os schopenhaurianos só não percebem isso por amor a Schopenhauer, e não por amor à verdade.

Como o próprio Schopenhauer tinha a preocupação de balizar suas ideias pelas descobertas científicas (via a sua filosofia como uma espécie de totalidade que conseguia apreender um sentido que escapava a todas as ciências, focadas que estão em campos específicos, mas que não as contradizia), é muito provável que, se ele estivesse vivo até hoje (ou se fosse ressuscitado e tivesse tempo de estudar o que ocorreu nas ciências e na Filosofia desde 1860), ele mesmo descartaria o seu sistema/pensamento único. Poderia até tentar reapresentar a sua intuição fundamental sob outra metanarativa, mas essa teria uma roupagem bem diferente do que a filosofia schopenhauriana possui. Os schopenhaurianos (tanto os amadores quanto os acadêmicos), pelo contrário, não possuem NENHUMA preocupação em pretender ATUALIZAR o pensamento de seu mestre à luz da ciência atual para AVALIAR se ele ainda é válido: ao contrário, ficam apenas ruminando de maneira autista os escritos do filósofo e, quando muito, de alguns autores correlatos a ele. Alguns (principalmente os amadores, já que os acadêmicos acabam nem mais se importando com isso, pois são meros pesquisadores pagos para os quais essas pesquisas estão mais para um trabalho burocrático que lhes dá uma renda do que para um assunto que realmente os comove intimamente) falam de “verdade”, mas se realmente se importassem com ela não agiriam como agem. O que eles querem é, no caso dos amadores, uma ideologia (a crença de que sabem a verdade) e, no caso dos acadêmicos, um ganha-pão. Preguiçosos, acomodados, medrosos e histéricos, às vezes até pilantras, a verdade simplesmente não lhes interessa. Enquanto a elite intelectual, que está na fronteira do conhecimento, faz as suas especulações com modelos físicos altamente complexos, os medíocres continuam, albergados em suas subculturas, ruminando afirmações já ultrapassadas que pensadores enunciaram há séculos ou mesmo há milênios. É uma completa desfaçatez que ainda hoje se produza teses e dissertações a respeito dos textos de Aristóteles e de Kant sobre a natureza, por exemplo. Talvez até o seja também as escritas a respeito dos textos deles sobre a moral e a ética.

No domínio da mera argumentação, da “razão pura”, tudo pode ser defendido ou criticado. Se descartamos o método científico como critério epistemológico, estamos entregues ao completo caos ontológico, pois sem o critério científico tudo, qualquer delírio, é válido. Os schopenhaurianos e kantianos descartam prontamente a ciência quando essa fere de morte os fundamentos narrativos de seus filósofos de estimação. Nisso, não são diferentes de tomistas. E todos esses “intelectuais” não diferem, em essência,  de um terraplanista de rede social; o que muda é apenas o verniz intelectual conferido pela erudição.



Discutir o idealismo platônico (e seus derivados, como os “graus de objetivação da vontade”) em pleno século XXI é uma completa palhaçada. Parece que ninguém mais lembra com que finalidade explicativa inventou-se essa baboseira logo depois que acabou a pré-história. Boa parte da Filosofia se tornou um picadeiro no qual os seus pesquisadores (palhaços), profissionais e amadores, discutem e repisam à exaustão, com ar de seriedade, questões já totalmente ultrapassadas. Triste fim o da Filosofia: ter virado ferramenta masturbatória e nicho de mercado dessa gentalha de humanas, cujas reflexões profundas não sobrevivem à ciência ensinada no Ensino Médio, a qual ela convenientemente esqueceu-se, se é que chegou realmente a entendê-la, ocupada que estava na adolescência com entretenimento, fofoca, literatura, álcool, tabaco, maconha, música, política, metafísica sexual, onanismo e alguma prática afetivo-sexual fajuta.



O estado atual da Filosofia acadêmica é pior do que era na época em que Schopenhauer a criticou duramente. Mais do que nunca, ela se resume a um emprego como outro qualquer, um ganha-pão sem qualquer ligação com um phatos que busca com obstinação, mesmo com desespero, a verdade. Os pesquisadores acadêmicos são arqueólogos da Filosofia, ruminam os mínimos detalhes do passado, mas (diferentemente dos arqueólogos de verdade) não têm mais nada de realmente novo a construir. Se tivessem algum compromisso real com a verdade, e não apenas com o conforto pessoal e com a vaidade, abandonariam imediatamente a Filosofia acadêmica. Vivem, e vivem bem, de uma eterna masturbação em torno de ideia ultrapassadas, já comprovadas ontologicamente falsas, até mesmo ridículas, pelas ciências.

E assim como os consumidores e produtores de Filosofia nada sabem ou querem saber de ciências, os consumidores e produtores de ciência nada querem saber da Filosofia. Parece que a ninguém surge a hipótese de que ainda é possível fazer alguma espécie de síntese entre ambas. As pessoas acreditam no que querem acreditar. Às favas a verdade. Ninguém está interessado em realmente entender, questionar, sintetizar, criar algo realmente novo. Cada um fica preso em seu mundinho, em sua bolha ideológica, e se agarra compulsivamente a ela, vivendo em negação quando ao resto. Uma comédia.

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