sexta-feira, 2 de junho de 2017

XIX

21/05/2017

Se a humanidade está perdida e tudo que você é – seja sua identidade seja sua alteridade – é fruto do mero acaso, por que se preocupar com tudo isso? Melhor relaxar e aproveitar o pouco que dá para ser aproveitado. A futilidade é uma conquista!


24/05/2017

O ceticismo leva a um tipo especial de gnose: a gnose sobre o caráter essencialmente delirante e idólatra do ser humano, o qual implica na inviabilidade de qualquer projeto de emancipação humana; e essa gnose, por sua vez, leva a um tipo especial de eudemonismo: o eudemonismo fundado em uma ética da indiferença, em um indifferens fati, um "apafatismo”, na renúncia à comoção com os delírios ideológicos-utópicos e com a vertigem da história e das notícias do dia. Poupando tempo e energia com essa omissão, fica muito mais fácil focar no cuidado de si, o qual tem um resultado muito mais concreto para o bem-estar do que a referida comoção (a qual tende a só atrapalhar o bem estar).



25/05/2017


Em matéria de lucidez, é difícil levar a sério teístas (exceto os gnósticos) e os adeptos da procriação – posições essencialmente “zumbíticas”, anti-lúcidas por excelência. Há uma exceção ou outra, como Dostoiévski, que só fazem confirmar qual é a regra. Obviamente que a lucidez não é uma questão limitada pelo princípio do terceiro excluído; assim como ocorre com a outsiderness, há um espectro de lucidez: quanto mais se aproxima do “lúcido por excelência” mais comum são o ateísmo, o niilismo e o antinatalismo (não como “causas” a serem impostas aos outros (pois impor causas aos outros também é incompatível com a lucidez), mas como posições pessoais, de foro íntimo). Mesmo na primeira infância já há lucidez – tanto que já nela começa a necessidade de ficção e mitologia para assim cobrir a intuição do real, mascarando-o e tentando torná-lo aceitável. Quanto mais lucidez se tem, menos se consegue iludir-se com ficções  entre as quais obviamente estão Deus e a esperança de um futuro melhor (utopia). Esse ateísmo e esse antinatalismo característicos da lucidez por excelência não são uma posição de veemente oposição ao teísmo e à procriação, mas tão somente um não compromisso com eles. Seguindo-se adiante no espectro da lucidez, chega-se a um ponto em que é impossível continuar aumentando-a se ainda há um compromisso com a vida (e Deus e seus sucedâneos não são nada mais do que reflexos desse compromisso).

Todos que se comprometem com a vida são escravos iludidos.

28/05/2017

Assim como na tradição ocidental a supressão temporária do sofrimento mediante o esquecimento de si e do desejo na contemplação estética é recorrentemente usada para “evidenciar” (de maneira fraudulenta, claro) a existência de um criador bom e bem sucedido para o universo, assim também na tradição oriental a supressão temporária do sofrimento mediante o esquecimento de si e do desejo auferidos com a meditação é recorrentemente usada para “fundamentar” um sentimento de “gratidão” em relação a um grande Outro (“a vida”, “Brahma” ou seja lá o que for). Embora essa tradição oriental parta frequentemente do “observar sem julgar”, logo que ela obtém com essa técnica uma jouissance ela (a tradição) a usa para elogiar a vida, tal qual faz a tradição ocidental com o sentimento de sublime fundamentando a narrativa do arquiteto vitorioso. Em ambos os casos, trata-se de uma mesma ação proveniente do instinto de autopreservação para tentar legitimar a vida e assim garantir a adesão do indivíduo à autopoiese apesar da lucidez. É tudo falso.

Quando, silenciando o blá-blá-blá ensejado pelos algoritmos autopoiéticos, paramos de tentar inventar elogios e justificativas para a vida, vemo-la como de fato é: um eufemismo para o mal.

02/06/2017

O que as pessoas religiosas chamam de “fé” não passa do desespero coberto com um véu. O “fervor” da fé é o fervor da fuga ante o conhecimento do real que leva ao desespero. A fé é um perpétuo movimento de fuga, é uma vontade de ignorância cujo alimento é o medo ao real. O “entregar-se a Deus” de Kierkegaard e outros é o entregar-se à ignorância e à loucura salutares para fugir da anomia e do suicídio que brotam da lucidez. Quanto  mais conseguimos resignar-nos à miséria do real, menos precisamos viver o desespero ou tentar encobri-lo com delírios como Deus e seus sucedâneos. Mas a resignação só pode vir após o enfrentamento do desespero, enfrentamento que só começa de fato quando se lhe tira o véu representado pelas ficções úteis à autopoiese. 

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