domingo, 3 de setembro de 2017

XXVI

29/08/2017

Um dos preços da comunicação não violenta é a regressão da consciência para níveis pré-históricos (obviamente incompatíveis com a manutenção de uma civilização).

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Ao se comprometer com a vida (e inclusive Rosenberg preferia o nome “uma linguagem da vida” em vez de “comunicação não violenta”), a CNV compromete-se inevitavelmente com a ilusão.

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A CNV se ilude ao menos duas vezes na ontologia que faz das necessidades humanas: primeiro, quando imagina que todas elas são “do bem” (não existe, por exemplo, necessidade de se sentir melhor do que os outros) e, segundo, quando imagina que é possível satisfazer simultaneamente todas as necessidades de todos (sendo que mesmo em uma só pessoa as necessidades já se contradizem entre si, o que dirá então em uma coletividade).

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Ou as coisas acontecem com tranqüilidade e sem abalar a minha paz de espírito, ou não acontecem: nada vale o meu estresse e o meu sacrifício. Vamos todos morrer e morrer sozinhos. Para que se esforçar seja lá pelo que for? Por que não relaxar e aproveitar quando se sabe que tudo acabará um dia mesmo?

30/08/2017

Se a vida fosse uma sucessão de prazeres, as pessoas não estariam desesperadas para lhe dar um sentido moral e para se anestesiarem com distrações de todo tipo (serviços muito bem prestados pelas religiões). Esse desespero é evidência de que a vida é o oposto de uma sucessão de prazeres, e que para se aderir a ela (ser um agente da autopoiese – simplesmente exercer seus instintos ao mesmo tempo que se tem uma metacognição) é preciso iludir-se. Basta ser uma máquina autopoiética dotada de lucidez para ser iludido.
Igualmente, as teodiceias da autoajuda seriam desnecessárias se o mundo fosse o que elas dizem que ele é: elas são um perpétuo movimento de negação do conhecimento do real em prol da adesão cega a ele, tudo isso disfarçado de “autoconhecimento” e “autoaprimoramento”. Tragicômico.


31/08/2017

Mesmo que fosse possível provar que existem seres inteligentes “do outro lado” (num outro nível do real ao qual não temos acesso) e ainda que esses seres se comunicam conosco (ou seja, eles podem acessar nosso nível do real, mas nós não podemos acessar o nível deles, conhecendo-o apenas pelo que eles nos relatam, ou eventualmente por meio de uma viagem intermediada por eles), ou seja, mesmo que fosse possível provar que essas pessoas que alegam entrar em contato com o além realmente estão entrando em contato com o além, mesmo assim, dizia eu, esses seres simplesmente não seriam dignos de confiança (assim como não o são as pessoas que alegam falar com eles): como é uma relação marcada essencialmente por uma assimetria informacional, não temos como ratificar ou retificar o que eles dizem (não há como validar o que dizem, como verificar o contraditório), e, portanto, se acreditamos neles simplesmente damos carta branca para eles nos manipularem livremente. Mesmo que esses seres existam e queiram falar conosco, eles, por uma questão puramente topológica, merecem nosso desprezo.
A questão não é que seja inútil se envolver com esse tema por ele ser obviamente falso (como pensa o ceticismo "neoateu"/cientificista), mas sim por ele estar obviamente para além de qualquer possibilidade de validação epistemológica (ceticismo, mas no sentido filosófico do termo). 

01/09/2017

Todos os caminhos levam para fora da vida.

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O simples fato de não entrarmos coletivamente em acordo sobre o que somos já é suficiente para mostrar que não somos nada: se fôssemos algo isso ser-nos-ia imediatamente cognoscível, e portanto não haveria desacordo ontológico a respeito dessa questão. Por não sermos nada, cada um consegue inventar e acreditar em qualquer ontologia absurda, e por isso não há possibilidade de acordo.

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“Animais: se você ama uns, porque come outros?”

Esse pessoal não percebe que o amor pelos animais serve tão somente como masturbação de determinadas redes neurais (para assim sublimar instintos)? Ele nada tem a ver com uma deontologia.
Como se adiantasse alguma coisa exigir coerência das pessoas em termos de uma moralidade universal quando elas nem conseguem ser coerentes consigo mesmas... Oh pessoalzinho otimista, hein.

02/09/2017

A propensão à adoração é indicativa de afirmação do querer viver (adesão cega à autopoiese). Se existe ainda ascese verdadeira na Índia (nesse lugar onde o povo adora desesperadamente qualquer coisa), certamente ela é residual (mesmo porque se não o fosse esse país não teria a densidade populacional que tem).
Esse papo de considerar os orientais em geral e os indianos em particular um povo “altamente espiritualizado” é puro marketing para vender gurus. Como as pessoas querem acreditar que existe alguma salvação, e como é evidente que ela não está próxima a elas, o jeito é imaginar que ela está em algum outro lugar (seja distante em termos espaciais e/ou temporais). O culto á Índia que ocorre em certas subculturas no Ocidente é só mais um verbete na enciclopédia das utopias inventadas pela humanidade. 
Se o Oriente em geral e a Índia em particular fossem tão “evoluídos espiritualmente” como esse pessoal gosta de acreditar, eles não estariam integrados nessa maquina omnicida do capitalismo global. Idolatrar a Índia por causa dos Vedas é tão ingênuo quanto idolatrar a França por causa de Lacan, ou idolatrar a Alemanha por causa dos seus muitos filósofos, ou a Romênia por causa de Cioran, etc. O vulgo é o vulgo em qualquer lugar, pouco importando os sábios que conseguiram se criar no meio dele.

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Quanto mais o sistema econômico progride e quanto mais a tecnologia reificante avança, mais a maquina omnicida da autovalorização do capital torna-se autônoma, prescindido assim de seus operadores (os quais acreditam que a máquina trabalha para o bem estar deles...): quanto mais nós, humanos, corremos para sermos produtivos, mais produzimos a nossa própria redundância. Se o improvável ocorrer e tudo “der certo” (se não nos destruirmos antes), chegará o dia em que o sistema estará maduro o suficiente para se livrar de nós de uma vez por todas, e assim iniciar um novo estágio no automatismo da matéria que anima o devir.

03/09/2017

Quando se aprende a olhar por detrás das máscaras de bem resolvimento que as pessoas usam, descobre-se que todos os seres humanos são, sem exceção, essencialmente doentes. 

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