sexta-feira, 12 de agosto de 2022

XLIII

 

03/06/22


Manda quem pode, obedece quem tem juízo e
não tem dinheiro para poder se dar ao luxo de dizer 'não'”.


11/06/22


Com o capitalismo, criamos um mostro. Não é o sistema que atende às necessidades das pessoas, mas as pesssoas que atendem às necessidades do sistema, do capital, da elite detentora do capital. E isso não é uma mera abstração, mas sim algo que se traduz literalmente nos corpos e mentes adoecidos das pessoas que pululam o globo.


09/08/22


Os humanos têm inteligência suficiente (exaptação negativa da lucidez) para entrarem numa crise existencial, mas não têm inteligência suficiente para sair dela. Logo, ela é incurável. A "solução" (impossível) poderia ser tanto retornar à aminalidade (algo na linha anarcoprimitivismo, e algo que Cioran tateia, por exemplo, no fim do texto "Urgência do pior"), quanto uma superação da condição humana, rumo ao super-homem ou ao transhumano, pós-humano. Acredito que todos esses sonhos de superação são ingênuos e estão contaminados por fantasias religiosas ou prometeicas. Logo, os humanos estão presos nessa condição, sem saída possível. Nietzsche e Kurzwei são utopistas ingênuos, vítimas da mitologia do Iluminismo.


12/08/22

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Automutagênese: Protocolo de Redução de Danos para o Proletário no Capitalismo Tardio (As Novas Tábuas da Lei)


I - O principal life hack para ter uma vantagem desleal no jogo da vida no capitalismo tardio: não procriar, não ter nenhum filho/a.

II - Essencialismo: focar nas saúdes (financeira, mental e física), no sucesso na divisão social do trabalho (ganhar o máximo possível trabalhando o mínimo possível), em relacionamentos de qualidade, em desenvolvimento pessoal, em resultados.

III - Pragmatismo: foco no que é prático, afastando-se de debates ideológicos, utópicos e dogmáticos, e afastando-se dos cultos a personalidades e a ideias. Foco em si e nas pessoas relevantes na sua vida, e não em causas, utopias, movimentos, ideologias, doutrinas, cultos, etc.

IV - Decisões qualificadas: conhecer a si mesmo e ao mundo, com foco na contextualização para a tomada qualificada de decisões.

V - Detox mental: Ignorância seletiva, fugir das drogas químicas e das semióticas que, onipresentes, intoxicam o cotidiano e exploram as fraquezas mentais da maioria para o lucro de uma minoria.

VI - Empatia pragmática. Sem vocação para herói ou mártir.

VII - Automutagênese: desenvolvimento contínuo e incremental de hábitos angulares de saúde e de alta performance.

VIII - Ócio criativo, prazer e diversão enquanto ferramentas de saúde e desenvolvimento da criatividade.

IX – O Belo: cultivo de altos valores estéticos, fugindo da vulgaridade e do grotesco que poluem a cotidianidade reificada.

X - Principais "ismos" com os quais manter relações: Essencialismo, Eudemonismo, Estoicismo, Epicurismo, Cinismo, Maquiavelismo, Hedonismo, Bon-Vivantismo, Antinatalismo Egoísta (Childfree), Pragmatismo, Ceticismo, Materialismo Ontológico (incluindo Marxismo enquanto ontologia do ser social), Niilismo Ativo, Existencialismo, Absurdismo, Realismo Radical, Apateísmo, Agnosticismo, Construtivismo, Agilismo, Iconoclastia. 


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quarta-feira, 27 de abril de 2022

XLII

 

29/03/22


A cegueira generalizada


É irrazoável esperar que pessoas sem letramento científico entendam e aceitem a realidade do aquecimento global, entendam e aceitam a realidade da evolução por seleção natural, entendam e aceitem os conhecimentos básicos de cosmologia, consigam evitar cair nas dezenas de pseudociências que pululam o cotidiano, etc.


Mas como ter "letramento científico"? São basicamente três caminhos: ou ter um bom ensino médio (a maioria não tem), ou concluir uma boa faculdade de alguma ciência natural (a maioria não chega a cursar), ou estudar metodologia científica e conhecimentos científicos por conta própria (nem que seja pelo estudo livros e vídeos de divulgação científica; mas a maioria das pessoas só estuda, mal e porcamente, algum conteúdo que seja útil para tentar ganhar dinheiro ou para tentar ganhar outra forma de poder sobre as demais pessoas).


Assim sendo, não é de surpreender a incultura científica generalizada. E é inútil tentar ensinar em poucos minutos de conversa, ou mesmo em algumas horas de conversa (se essas estivessem disponíveis, e em geral não estão), o que a pessoa não aprendeu na educação formal ou não buscou aprender pesquisando por conta própria.


Essa falta de letramento científico também ajuda a entender a cegueira generalizada a respeito dos fundamentos materiais da existência humana (e, portanto, a respeito da insustentabilidade no nosso estilo de vida). Se bem que essa cegueira atinge até os letrados cientificamente, embora seja mais fácil para eles perderem ela.


Os humanos (ao menos as culturas humanas hegemônicas) se perderam nos labirintos da "cultura", no domínio do simbólico, esquecendo da matéria; seu afã de se afastar da natureza foi tanto que eles ficaram cegos para as bases materiais da sua própria existência.

Mesmo os "materialistas históricos/dialéticos" se perderam totalmente na crítica cultural e na luta pela hegemonia (com vistas à sua utopia política pueril), e são cegos às bases materiais de nossa existência coletiva. E os religiosos em geral, então...; se praticamente todas as religiões, senão todas, concordam com uma ideia de essência humana imaterial (espiritual, anti-animal), que fundamentação ontológica elas teriam para lutar contra essa cegueira que está nos levando à extinção? Ao contrário, elas são praticamente a origem dessa cegueira... Se elas foram úteis para criar o fenômeno propriamente humano, também estão sendo úteis para levá-lo ao seu fim. 

A humanidade, para sobreviver, precisaria subitamente realizar um giro de 180° no caminho que vem seguindo, o que obviamente não acontecerá. E mesmo que acontecesse “nos 48 minutos do segundo tempo”, seria tarde demais, pois não dá (é fisicamente, materialmente, e tecnicamente impossível) para consertar em poucos anos ou décadas um estrago produzido cumulativamente ao longo de séculos ou mesmo milênios. Não existem milagres, nem almoço grátis.


Alguém pode objetar que eu, então, me acho o não cego numa terra de cegos? Que eu me arrogo a petulância de saber o que a maioria não sabe? Incluindo nessa maioria quase todas as pessoas que inclusive têm mais educação formal do que eu e que têm uma autêntica e farta produção intelectual e mesmo científica, isso? Sim, isso mesmo. Mas o curioso é que nenhum dos conhecimentos que eu possuo, inclusive todos os ligados ao fim do mundo via colapso ambiental (solenemente ignorado por quase todos os 8 bilhões de humanos de todas as culturas, graus de instrução e classes sociais), é “secreto”: eles estão ai para quem quiser encontrá-los. Ocorre que as pessoas simplesmente não querem encontrá-los; elas têm centenas, milhares, de outras prioridades. O que eu sei, eu sei por uma mera questão de ter priorizado essa busca, enquanto a maioria priorizou e prioriza outras coisas. As informações estão aí para quem quiser conhecê-las, são públicas. Mas quase ninguém quer saber. É uma autêntica vontade de ignorância. Tragicômico.



04/04/22


As principais necessidades humanas atendidas pelas religiões


1. Auxílio: Primeiro, um auxílio real (por meio dos serviços prestados a título de caridade e solidariedade pelos adeptos da religião, e pela rede de apoio criada por eles) e um auxílio imaginário (criado pelo comércio imaginário com os deuses) que tem um efeito de elevar a confiança e a motivação das pessoas, facilitando a adesão à vida e a submissão aos poderes estabelecidos.


2. Convivência: A religião oferece grupos de convivência, o que atende a necessidade humana atávica de interagir com outros humanos, formar laços. Remete à vida humana primitiva (e mesmo dos hominídeos e a maioria dos mamíferos), a qual ocorria em pequenos grupos: foram em pequenos grupos que os nossos genes sociais foram selecionados.


3. Familiaridade e segurança: uma vez as crenças religiosas implantadas nos cérebros em formação das crianças (ligando-se à base da formação dos seus modelos de mundo, ligando-se a experiências primordiais e a sentimentos atávicos), sair do mindset religioso torna-se fonte de insegurança: permanecer sob a religião é o caminho mais curto e seguro para o indivíduo fugir do medo focar em administrar a sua vida.


Esses três pontos acima são os motivos principais a atrair e manter os indivíduos sob a religião. Mas há ao menos mais dois, que são estatisticamente menos comuns:


4 Disciplina: A religião oferece um sistema de cresças que promovem o foco e a disciplina, a administração da própria vida (autocuidados) de forma a aumentar a homeostase com o resto da sociedade, e assim obter vantagens da divisão social do trabalho e do excedente econômico. Do ponto de vista da sociedade, a religião oferece um sistema teórico e prático de disciplinamento dos corpos e mentes. Mas a maioria das pessoas geralmente não vão atrás da religião pensado em ter isso, esse acaba sendo um benefício secundário (não imediato) para elas. Elas são disciplinas, em geral, contra a sua vontade imediata, mesmo que depois, disciplinadas, percebam a vantagem dessa disciplina.


5. Explicações ontológicas e axiológicas: A religião oferece um conjunto de respostas prontas para uma série de dúvidas ontológicas e axiológicas, o que facilita a vida da maioria das pessoas (que assim não precisa pensar sobre o assunto, basta aderir ao que a religião diz). E mesmo para aqueles que gostam de pensar, a religião oferece um labirinto sem fim de teologias e literaturas, que podem dar ao seu estudante a convicção de sabedoria, de verdade e de profundidade. Mas quando o motivo principal pelo qual alguém busca a religião é a questão da verdade, aí invariavelmente a pessoa acabará por abandonar a religião, pois ela (a religião) não se sustenta na psique de uma pessoa apenas por esse aspecto tão fragilizado em virtude da competição com tantas outras explicações disponíveis, ou mesmo da competição com o livre pensar.



12/04/22


Adultos infantilizados, crianças adultificadas


Freud alegou que a maioria dos adultos são simplesmente crianças grandes. Os supostos adultos (do ponto de vista jurídico e social são adultos, mas, na prática, não são muito menos infantis que as crianças) passam sua adulticidade revivendo os conflitos da infância, sem grandes progressos psicológicos ou morais.


Mas o que eu quero salientar aqui é um outro aspecto, que eu não sei se foi abordado por Freud: é a contradição que há entre os outsiders que atingem uma maturidade intrapessoal mas fracassam no jogo da vida (e por isso são tidos como infantis) e entre os insiders que têm sucesso nas métricas do jogo da vida (e que por isso são tidos como adultos), mas que não se diferem muito de crianças em termos intrapessoais (inclusive mantém intactas em suas mentes muitas das crenças falsas que a religião, a mídia e o senso comum lhe incutiram na infância).


Para a pessoa desconstruir o castelo de mentiras do senso comum, das ideologias hegemônicas e das baboseiras religiosas enfiadas em nossos cérebros desde a infância, é necessário um trabalho intelectual hercúleo, e, ainda, um longo e doloroso trabalho de autoconhecimento e de autocrítica. Ao empreender todo esses esforço, a pessoa assume um custo de oportunidade: ela foca menos em obter sucesso no “jogo da vida”, em ter sucesso no campo dos relacionamentos e no campo da produção econômica ("mercado de trabalho" e "empreendedorismo"). E, ao focar menos nesse jogo, é natural que ela tenha menos sucesso nele. Ao ter menos sucesso, ela será lida como uma pessoa fracassada, e mesmo será tida como infantil e imatura. Uma pessoa de quase 40 anos que não constituiu família e nem foi promovida em sua carreira várias vezes só pode ser infantil, pensam os insiders “adultos” (que são “adultos” porque casaram, têm dois filhos e foram promovidos em suas carreiras, embora ainda acreditem em papai Noel (Deus)). Às vezes uma pessoa de quase 40 anos sem filho e que não foi promovida em sua carreira (ou nem carreira tem) é infantil e imatura mesmo, mas nem sempre. Mas, como os insiders em geral nem sabem da existência dos outsiders, fica realmente difícil para eles tirarem uma conclusão diferente dessa...


Inversamente, o insider que consegue “ter sucesso” no “jogo da vida”, que casou, teve filhos, tem uma renda boa, uma carreira ascendente, etc., esse insider, dizia eu, precisou focar tanto nesse jogo que a sua mente é completamente acrítica e ingênua no que diz respeito à desconstrução do senso comum, das ideologias hegemônicas e dos infantilismos das religiões. Esse “adulto bem-sucedido” é, do ponto de vista ontológico e epistemológico, praticamente uma criança, vive num realismo ingênuo e acredita no papai Noel e em outras ilusões obviamente falsas. Se não fizer terapia (e às vezes mesmo tendo feito ela por anos), ou se não tiver ao menos tido uma boa infância e bons pais (o que é raro de se ter), ainda por cima provavelmente ele será altamente imaturo emocionalmente, mesmo que tenha “aprendido” muito criando seus filhos e progredindo em sua carreira. Mas, para o outsider que decifrou o enigma do mundo, que desceu até o fundo do abismo e voltou, esse insider “adulto” é só uma criança grande.



26/04/22


Os cinco motivadores para os que acreditam que estão lutando por um mundo melhor:


1 A busca genuína por diminuir o sofrimento alheio. 

Essa primeira está no domínio da generosidade. E quatro seguintes estão no domínio do egoísmo:


2 A pessoa ajuda sem querer nada material em troca e até sem querer status, mas acredita que Deus, ou "o universo", vai recompensá-la mais tarde. Ou mesmo espera que quem ela ajudou eventualmente retribua no futuro, numa espécie de toma lá, dá cá. Esse pensamento é muito difundido no campo da autoajuda e da espiritualidade: as pessoas são encorajadas a ajudar sem querer nada em troca, mas são também encorajadas a acreditar que serão recompensadas justamente por ajudar sem querer nada em troca... Uma série de histórias (supostos casos reais) são relatadas mostrando exemplos edificantes de pessoas que ajudaram sem pensar em recompensa e... foram recompensadas por sua generosidade. 


Nesse campo de uma recompensa potencial (ideal, imaginaria, virtual), há também as promessas de recompensa no pós-morte (seja ir para "o céu", seja reencarnar em situações mais favoráveis, etc.)


3 A busca por status: está no domínio do poder intersubjetivo: a pessoa ser reconhecida como tendo superioridade(s) em relação aos demais. Pode ser apenas superioridade moral (como no caso de um Chico Xavier, por exemplo), mas geralmente essa dita superioridade é remunerada com acesso a uma porção maior de consumo do produto econômico da sociedade, o que nos leva a ao quarto motivador. Mas o status tem valor por si próprio, independentemente de quão remunerado ele seja em termos de acesso ao consumo de valores de uso. O status é agradável ao ego, pois faz a autopoiese dele, a sua expansão. Ao se sentir superior em algo (ou em mais de uma área) em relação aos demais, e ao ter essa superioridade reconhecida por outros indivíduos, a pessoa pode se regozijar por estar acima dos demais. Ela pode, inclusive, se regozijar por acreditar, via efeito halo, que ela é simplesmente uma pessoa superior às demais: a superioridade numa área ou outra vira superioridade em geral. As pessoas religiosas que abdicam do acesso à riqueza material não raro não abdicam do reconhecimento alheio da sua superioridade moral; elas adoram ser vistas como um exemplo que os outros deveria seguir; ou seja, são superiores aos outros no campos da moral, da virtude e da espiritualidade; o mundo seria um paraíso se todos fossem como elas, ou ao menos tentassem ser.

Mesmo que elas acreditem que estão se libertando do ego, na verdade estão o alimentando, ainda mais com as ilusões de que têm contato com o transcendente e de que irão sobreviver e prosperar no mundo espiritual do pós-morte. Novamente, o caso de Chico Xavier é bem ilustrativo dessa falsa modéstia. 


4 Busca por riqueza material: está no domínio do poder objetivo: a pessoa com status em geral é remunerada com acesso a uma porção do produto econômico maior do que a porção que as pessoas com status menor do que o dela. E, assim, delineia-se uma estrutura social piramidal. Há exceções, em especial no caso em que a pessoa quer exibir uma superioridade moral pela via da renúncia aos prazeres do mundo (o que geralmente acontece no campo religioso). Apesar dessas exceções, a regra é que o status intersubjetivo seja acompanhado por um maior acesso ao consumo dos valores de uso (dos "bens", como chama a economia mainstream).


5. Quando o "melhorar o mundo" passa por se opor a um ou mais grupos de pessoas ou de instituições (e isso praticamente sempre acontece, pois os mocinhos precisam estar em luta heroica contra vilões), não raro esse desejo de suposta melhoria do mundo é alimentado por um desejo de vingança, o qual, por dia vez, é fruto do ressentimento, da inveja diante do sucesso alheio. Esse motivador também está ligado à autopoiese do ego.


A combinação dessas cinco  motivações não é fixa na vida de uma pessoa, ou de uma instituição. Diferentes pessoas, em diferentes momentos, serão motivadas por uma composição diferente desses cinco motivos.  A depender da personalidade (mais especificamente, do caráter) de cada um, um motivador terá mais peso do que outro. Pode até ser verdade que algumas pessoas (minoritárias) realmente são movidas apenas pelos dois primeiros motivos, enquanto outras (maquiavélicas profissionais e mesmo psicopatas) são movidas apenas pelo terceiro e pelo quarto e fingem serem motivadas pelos dois primeiros, mas a maioria parece ser motivada por uma confusa mistura dos cinco. E mesmo é provável que a maioria das pessoas nem saiba o que realmente a move. É supercomum que a pessoa ache que está sendo movida por motivos generosos enquanto nem percebe os motivos egoístas atuando em sua mente. Para perceber e aceitar a atuação desses motivos menos nobres, já é preciso uma dose se sinceridade que é inacessível à maioria. O autodesconhecimento atinge a maioria, mesmo porque o autoconhecimento é um trabalho longo e penoso, ao qual a maioria está longe de se dedicar e mesmo de ter condições de fazê-lo. E como as pessoas são educadas (com forte influência da moralidade cristã) a considerar apenas legítimas as motivações generosas, e como, ainda, são educadas a acreditar que toda motivação egoísta é digna de punição, elas acabam se esforçando para esconder dos outros, e mesmo de si próprias, as suas motivações egoístas.


Quanto à mudança da composição desses motivadores ao longo de uma jornada, o roteiro mais típico de acontecer é a motivação generosa ir enfraquecendo frente às outras três à medida que uma pessoa ou uma instituição envelhece e vai acumulando poder, patrimônio e responsabilidades: a pessoa pode começar motivada por ajudar aos outros, mas a experiência e as responsabilidades do poder vão corrompendo essa motivação original e fortalecendo as outras três.


É exagero e reducionismo dizer que quem se coloca na posição de lutar por um mundo melhor o está fazendo apenas para ter controle sobre os demais (poder) ou para receber recompensas ou para se vingar, mas também é reducionismo ingênuo acreditar que a pessoa é movida apenas por generosidade pura de interesses egoicos. 


27/04/22


Quase 200 vieses cognitivos:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Vi%C3%A9s_cognitivo#/media/Ficheiro:Codex_Vi%C3%A9s_Cognitivos.jpg


Quais seriam a qualidade e a quantidade das crenças de alguém que genuinamente tentasse diuturnamente escapar a todos eles?

sábado, 19 de março de 2022

XLI

 

03/03/22

De longe, só pela aparência e pelo comportamento público, já acho a maioria dos humanos desprezíveis. E, quanto mais conheço os detalhes da vida de alguém, mais decepcionado eu tendo a ficar. Mas ainda assim, diferentemente de Cioran, eu não chego a ter uma aversão à ideia de ser humano: não sei o motivo, mas tenho apenas uma aversão aos humanos concretos, que conheço empiricamente, mas não à ideia de humano. Ainda assim, mesmo sem esse desprezo à ideia de humano, há uma parte minha que fica feliz com a ideia da extinção humana (não por causa do desprezo à ideia de humano, mas pelo desprezo aos humanos que de fato existem em suas múltiplas imperfeições).


05/03/22


Sobre a acupuntura e demais tratamentos alternativos


1. Não faz sentido biológico a existência dos pontos.

2. Não há exames (tipo uma ultrassonografia ou um raio-x) que detectam os pontos: porque eles simplesmente não existem, não correspondem a nenhuma estrutura física mensurável.

3. Mesmo que existissem, eles não estariam exatamente nos mesmos pontos em todas as pessoas (haveria diferenças milimétricas, o que é muita coisa quando se está falando de acertar um ponto com a ponta de uma agulha).

4. Mesmo que estivem no mesmo lugar em todas as pessoas, não há garantia de que os profissionais estão acertando esses pontos, porque, novamente, esses pontos não correspondem a nenhuma estrutura física, material, observável (como, por exemplo, um vaso sanguíneo ou um nervo).

5. Mesmo que estivessem acertando o ponto com a agulha, não faz sentido que colocar uma agulha no ponto superficial da pele teria qualquer efeito de homeostase/cura.

6. Mesmo que, com tudo isso, a acupuntura funcionasse, os estudos científicos mostrariam que funciona, pois as alegações da acupuntura são passíveis de testagem pelo método científico.

7. Mesmo que haja estudos que apontem algum efeito estatisticamente relevante da acupuntura, não é o que mostram as meta-análises.

8. Justamente por isso, já no primeiro parágrafo do artigo da Wikipédia sobre o tema, a acupuntura é classificada como pseudociência.

9. Quem acha que a acupuntura é científica simplesmente não entende o que é a ciência, ou entende e é mau-caráter, ou ambos (afinal, se envolver supostas técnicas curativas sem se dar ao trabalho de entender de ciência já é denota falta de caráter).

10. A minha experiência com charlatões e com seus seguidores demonstra que eles pura e simplesmente não entendem como funciona o método científico, e nem querem entender.

11. Essas pessoas fundamentam sua fé em evidências anedóticas, não entendem que esse tipo de evidência não tem valor científico e tem baixíssimo valor epistemológico. Não entendem de ciência e em geral nem sabem o que é epistemologia. Não entendem (nem querem entender), entre outros, os conceitos de placebo, de regressão à média, le lei dos grandes números ou de falácias lógicas - como argumento de autoridade ou post hoc ergo propter hoc ("depois disso, logo, causado por isso"). Depois de tantos anos acreditando em uma mentira (e depois de terem gastado tantos recursos com ela), não terão a dignidade, o caráter, de admitir o erro, porque não se importam com a verdade (se se importassem, entenderiam do método científico).

12. A acupuntura, assim como todas essas práticas alternativas não validadas cientificamente, não passa de pensamento mágico, de charlatanismo para tirar dinheiro de pessoas fragilizadas pelo sofrimento. Mesmo quando o charlatão não recebe qualquer pagamento econômico, ele recebe uma remuneração simbólica em termos de status, e isso já é muito gratificante para o ego dele (mesmo que ele alegue estar desprendido do próprio ego). Mas a maioria dos charlatões é muito bem remunerada economicamente pelo serviços que supostamente oferece.

13. Mesmo que me ofereçam de graça um serviço desses (no máximo, costumam oferecer a primeira sessão de graça), ainda assim eu estaria gastando meu tempo e minha atividade cerebral, o que são custos que não valem a pena para algo que a Wikipédia diz que é pseudociência.

14. Só me prestaria a gastar meus recursos com algo assim (qualquer medicina alternativa), se eu estivesse numa situação desesperadora e já tivesse tentado exaustivamente os tratamentos baseados em evidências.


"Os melhores estudos controlados mostram um padrão claro, com acupuntura o resultado não depende da localização da agulha ou mesmo da inserção da agulha. Como essas variáveis são as que definem a acupuntura, a única conclusão sensata é que a acupuntura não funciona. Todo o resto é o ruído esperado dos ensaios clínicos, e esse ruído parece particularmente elevado na pesquisa em acupuntura. A conclusão mais parcimoniosa é que com a acupuntura não há sinal, apenas ruído."


https://universoracionalista.org/acupuntura-nao-funciona/



09/03/22


Todo mundo é confiável, até um dia em que deixa de sê-lo.


16/03/22


Esse papo de “inteligência leva à solidão e à infelicidade” (no sentido de pessoas que têm uma inteligência acima da média serem mais infelizes) é somente verdade em parte, e em uma parte bem pequena.

Vale lembrar que existem muitas inteligências, ou, caso se queira pensar em uma inteligência apenas, existem muitas diferentes áreas as quais a inteligência pode se focar em detrimento das demais (e ninguém consegue nem chegar perto de ser inteligente na maioria delas, muito menos em todas). É um tipo específico de inteligência, ou uma área específica de foco da inteligência, que pode levar à infelicidade e à solidão, e não a inteligência em geral. Bem utilizada, focada na promoção da saúde e da melhoria da qualidade de vida, a inteligência tende a melhorar a vida das pessoas. O desconhecimento e a ignorância cobram preços muito mais elevados para a felicidade, e mesmo para a qualidade das relações interpessoais, do que o conhecimento e a sabedoria.

Esse papo de “os inteligentes são infelizes e solitários” é muito mais uma desculpa, uma racionalização, de gente pouco inteligente para afagar o próprio ego diante do fracasso na vida em termos de felicidade e de sucesso nas relações interpessoais (“sou infeliz e sozinho, mas é porque sou inteligente e os outros a minha volta são burros). Se a pessoa de fato aplicasse a sua inteligência a essa área (da busca da felicidade e do sucesso nas relações interpessoais), provavelmente ela teria bons resultados, mas ela escolheu se envolver em assuntos fringe alheios a isso, e, porque os domina minimamente enquanto a maioria das pessoas nada sabe sobre eles, ela se acha mais inteligente do que os outros, quando, na verdade, é apenas alguém (que pode ter uma inteligência mediana ou até abaixo da média) que decidiu focar em um assunto pouco usual.

Mesmo quando a pessoa foca a sua inteligência em entender a verdade sobre esse mundo, despida de otimismo e justificações laudatórias – e é esse o foco da inteligência que pode levar à infelicidade – , a infelicidade não decorre do conhecimento em si, mas do choque (da frustração da expectativa) desse conhecimento do que o mundo é com o desejo do que ele deveria ser: ou seja, não é causado pela inteligência, mas por um desejo que não se compatibiliza com a realidade.

Nós vivemos numa sociedade na qual cada vez mais tudo empurra as pessoas ao solipsismo. A solidão é um fenômeno social, da nossa época. Essa “tese” de “culpar” a inteligência é uma forma não inteligente de ignorar tanto a responsabilidade de cada pessoa sobre sua própria vida (inautenticidade), quanto a responsabilidade coletiva sobre o funcionamento social (reificação), quanto a responsabilidade política dos gestores/arquitetos do modelo de sociedade que criamos (pensamento apolítico).


19/03/22


Eudemonismo duanconradiano


É formado pela zona de interseção entre o niilismo passivo (mão esquerda), o maquiavelismo (mão esquerda), o cinismo (mão esquerda) e o estoicismo (mão direita).


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

XL

 

13/01/22

Eles não se importam com a verdade



Agora que as teorias da conspiração se tonaram arma política da alt-right, os sociólogos (esquerdistas) passaram a estudar o “negacionismo”. Se se importassem com a verdade, já teriam estudado o assunto há muito tempo. Mas não se importam com ela: se importam com poder, com política, com divisão do excedente econômico.

Certa vez (em 2004), um estudante de filosofia petista (hoje já é “doutor em filosofia”, risos), achou graça e esnobou a minha preocupação com a compatibilidade entre o idealismo transcendental e a relatividade geral. Ano passado, conheci um doutorando em sociologia que está estudando a vida de um político comunista brasileiro da metade do século passado. Parece até piada, o mundo acabando e essa é a prioridade a ser estudada.

Desse jeito, não surpreende que a humanidade esteja condenada à extinção. Essa gente vai morrer esperançosa, abraçada aos seus diplomas e ruminando a ladainha do realismo capitalista (“é mais fácil pensar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”).



15/01/22

A diferença entre religião e seita



O objetivo principal (e secreto) tanto da religião quanto da seita é criar um ambiente de exercício de poder dos líderes sobre os liderados. Esse poder se dá tanto na apropriação do excedente econômico como no controle psíquico sobre os liderados: os líderes ficam com vantagens econômicas e de status, gozam de prazeres ligados ao luxo e gozam por poderem brincar/controlar as mentes e as ações de outras pessoas: ao serem idolatrados, recebem privilégios de consumo de valores de uso, mas a idolatria vale por si mesma, mesmo que não houvesse reflexo no consumo de valores de uso. Vontade de potência. E o controle sobre as mentes abre espaço para algo muito importante para a maioria dos líderes: a oferta de corpos belos e submissos para o abuso sexual.

A diferença central entre a a religião e a seita é que a religião é um sistema de exploração extensiva, enquanto a seita é intensiva: a religião é para as massas e a seita é para pequenos grupos de pessoas com uma inteligência e um patrimônio acima da média. A religião é produção em massa, a seita é artesanato.

Toda religião começou como seita, e toda religião mantém seitas em seus círculos internos. Toda ideologia tem contornos de religião (1. uma doutrina da salvação (ou ao menos da melhoria da qualidade de vida), 2. dogmas e 3. hábitos de idolatria a ideias e a humanos ligados ao desenvolvimento e à reprodução dessas ideias), assim como todo grupo de estudos/trabalho de uma ideologia adquire contornos de seita (além dos contornos da religião já mencionados, há a submissão cega ao líder/aos líderes do grupo, além um relacionamento mais íntimo entre os membros do grupo (um grupo mais seleto) do que há entre os membros da religião): é como se a religião compreendesse o espaço que vai do país ao bairro, enquanto a seita começa na rua do bairro e entra no espaço da família.

Tanto na seita quanto na religião, os chamarizes são os mesmos: 1. uma doutrina da salvação (ou ao menos promessas quanto à melhoria da qualidade de vida); 2. o oferecimento da um grupo com o qual a pessoa possa se relacionar (o que remete ao comportamento atávico de mamíferos, hominídeos e humanos antigos de viverem em pequenas comunidades); 3. o oferecimento de um convicção quanto à verdade; 4. através dessa convicção de que se sabe a verdade, o oferecimento de uma base a partir da qual a pessoa possa odiar/desprezar os outros (se sentir superior a eles); 5. e, por fim mas não menos importante, um estilo de vida, o qual livra a pessoa de ter que tomar decisões sobre como viver a sua vida: basta seguir o roteiro definido pela doutrina e pelos líderes, ou mesmo consultar esses líderes para ser aconselhada por eles.

E, ao oferecer tudo isso, as seitas e religiões oferecem uma disciplina, um propósito, e uma comunidade, ofertas as quais realmente são capazes de melhorar a vida das pessoas, desde que haja uma homeostase, na cabeça de cada pessoa, entre a doutrina e o mundo fora da doutrina (desde que a pessoa consiga funcionar bem em sociedade apesar da doutrina da religião/seita: dentro de certos limites, a doutrina ajuda a promover a homeostase entre o indivíduo e o ser social; passando desses limites, ela começa a atrapalhar). Mas como o objetivo real é a remuneração que os líderes recebem por esses serviços prestados, mesmo com essas melhorias de vida a relação pode adquirir um aspecto sombrio de exploração, em especial nas seitas.

O papel dos líderes é administrar os serviços oferecidos pela religião/seita (descritos acima) e administrar a divisão social do trabalho e o patrimônio necessários para a autopoiese da religião/seita, bem como o papel de relações públicas, isto é, de ser a voz da religião/seita com o resto da sociedade.

As seitas que começam a fazer sucesso demais – no tempo (sobrevivem mesmo à morte do seu líder) e no espaço (têm uma doutrina vulgar o suficiente para se massificarem, ou têm uma doutrina que passa por um processo de vulgarização para que essa massificação ocorra) – viram religiões, as quais mantém as estruturas de seita em seus círculos internos. Idem para as ideologias políticas.



23/01/22

A falta de uma solução apriorística



O teórico da conspiração tende a achar que tudo é controlado por indivíduos planejadores e que nada é por acaso, já o razoabilista tende a achar que nada é controlado por indivíduos fora da possibilidade do escrutínio público (e que o que não é controlado pelos indivíduos, à mercê do escrutínio público, é controlado por forças naturais que regulam a homeostase dos sistemas complexos) e que muitas coincidências acontecem (melhor dizendo, que tudo o que não pode ser explicado pelo controle sob o escrutínio público ou pelas forças anônimas de homeostase dos sistemas complexos é explicado pelas coincidências).

Os dois lados estão parcialmente certos e parcialmente errados: de fato existem coincidências, de fato existem as forças anônimas que regulam os sistemas, de fato existem os controles sob o escrutínio público, mas também de fato há controles fora do escrutínio público. Não há como, a priori, aplicar uma regra geral (seja paranoica, seja razoabilista) para “resolver” (chegar à verdade) todo caso. Cada caso precisaria ser analisado meticulosamente para um veredito mais qualificado. Mas isso é, na prática, impossível. Impossibilidade essa que, inclusive, favorece aos possíveis conspiradores realmente conspirarem, pois sabem como é fácil suas pegadas e digitais serem apagadas, e ficar somente a aparência da coincidência.


21/02/22

A triquetra




A Exaptação Negativa da Lucidez interagindo com o Desejo alimentam nossa Fantasia e nos permitem imaginar mundos melhores do que o Mundo verdadeiro e versões de nós melhores do que os nós mesmos verdadeiros; passamos, então, a desejar essas versões alternativas, irreais, em detrimento do Real: projetamos nossos desejos para um campo de possibilidades que está fora do Real, para um campo Imaginário (o campo do Irreal). A partir do momento que não aceitamos a (nossa) Vida como ela é e o mundo como ele é (a partir do momento em que escolhemos dar prioridade ética a essas fantasias em detrimento do Mundo real e da (nossa) Vida real), a Verdade (que nos lembra de que não somos/seremos o que queremos ser, nem te(re)mos o que queremos ter, nem o Mundo é/será o que gostaríamos que ele fosse) passa a nos fazer mal, a nos deprimir: para nos animarmos, nos motivarmos e nos reconectarmos com a Vida, precisamos da Mentira ou do Esquecimento (ambas formas de tentar atacar a Exaptação Negativa da Lucidez), precisamos ou acreditar que de alguma forma (fantasiosa) seremos/teremos algum dia (nem que através de reencarnações ou transhumanismo ou seja o que for) o que queremos ser/ter; ou precisamos esquecer o que somos/temos e do que não somos/não temos: esquecer por meio das drogas químicas e semióticas (incluindo aqui os entretenimentos, as religiões e as utopias), do sono e da forma mais eficaz de esquecimento: a Morte.

O "realismo depressivo" é a preferência pela Verdade em detrimento da Vida. Mas essa contradição entre Verdade e Vida apenas existe como consequência da Escolha de não aceitação do Mundo e da Vida tal qual elas são (de, via Exaptação Negativa da Lucidez, conhecer o Real e rechaçá-lo), Escolha essa que é MORAL. A Verdade, no campo ontológico, faz mal à Vida porque já se escolheu, no campo ético, priorizar o Irreal em detrimento do Real. Se escolhemos aceitar o Mundo e a (nossa) Vida tal qual eles são, apesar de sermos capazes de imaginar mundos melhores – se escolhemos o amor fati – reconectamos a Vida à Verdade, e realizamos essa reconexão por meio de uma Escolha Moral, recuperando, assim, a tripla identidade entre o Bom, o Verdadeiro e a Vida. 

A separação entre Vida e Verdade, portanto, decorre da Escolha Moral Má, da escolha por priorizar eticamente o Irreal em detrimento do Real, da escolha de alocarmos o nosso Foco e, portanto, o nosso Desejo, no campo do Irreal (a vida acontece onde focamos a nossa atenção). A escolha Boa – que leva à reconexão entre a Vida e a Verdade – é a escolha de priorizar, no campo da Imaginação e do Desejo, o Real em detrimento do Irreal: é, apesar de conseguirmos imaginar mundos melhores e versões de nós mesmos melhores, escolher priorizar a (e, portanto, focar na) versão que de fato existe, reconciliando o princípio de Prazer com o princípio da Realidade e com a Vida: é cumprir a oração que pede para sermos capazes de mudar o que pode ser mudado (focarmos a imaginação e o desejo em melhorar o Real) e de aceitarmos o que não pode ser mudado (escolhermos eticamente retirar a Imaginação e o Desejo do campo do Irreal, aceitando o Real com suas limitações intrínsecas), tendo o discernimento (a Lucidez, não exaptada negativamente) de diferenciarmos um do outro.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

XXXIX

 

08/01/22

Os donos do mundo são psicopatas?

Considerar "os donos do mundo" como simplesmente "psicopatas" é uma simplificação moralista da questão. A verdade é que quase todo mundo faria o mesmo que eles fazem se estivesse no lugar deles. Há verdadeiros psicopatas no poder, mas há também os que são "apenas" maquiavélicos, e que aprendem a sê-lo mesmo por questão de manter seus privilégios (e os da sua família). Se eles não jogarem o jogo com maquiavelismo, sabem que serão descartados e perderão o poder e privilégio que possuem. Então, pensando em defender a si próprios e a sua família, não têm outra escolha senão jogar o jogo de acordo com as regras dadas, reproduzindo o poder e o capitalismo. Estão presos em gaiolas de ouro. Eles são instrumentos do poder e do capitalismo, se tentarem se opor, serão descartados ou mesmo destruídos: não apenas eles, mas suas famílias também.

Note que a pessoa comum, que precisa lutar diariamente para garantir seu lugar ao sol, está também sujeita à mesma pressão. A diferença é que a pessoa comum está presa aos níveis mais baixos da pirâmide de Maslow, enquanto quem está no topo está preso nos níveis superiores, e obviamente não quer cair para os níveis inferiores e, assim como a maioria, ter que precisar lutar diariamente pela satisfação das necessidades mais básicas. E nós sabemos que, satisfeitas as necessidades mais básicas, o desejo está longe de esmorecer. O desejo (as “necessidades”, como se diz pasteurizadamente) é tão poderoso que mesmo que os indivíduos pudessem colecionar universos onde eles são deuses, eles ainda iriam querer mais: e, novamente, isso não é uma psicopatia, dado que mesmo pré-adolescentes vulgares brincam de criar universos (escrevendo livros, criando jogos, programando simulações, etc.).

Dos mais pobres ao bilionários, estão todos tentando sugar o máximo que podem pelo máximo de tempo que puderem. Mesmo que saibam ou desconfiem que a sociedade tal como é não poderá durar para sempre, e que seus esquemas e empreendimentos particulares são insustentáveis, o objetivo é estender o máximo que der, aproveitar o quanto der, e ir empurrando os problemas para o futuro, para quando não der mais para empurrar. Gerações já passaram fazendo isso, e a atual sonha em fazê-lo também. Esse comportamento é incrivelmente semelhante, tanto na elite mais rica quanto do massa mais pobre: focar em ganhar o máximo possível, e empurrar a conta para o mais longe possível. A economia marginalista até chama isso de "comportamento racional" (maximizar os benefícios recebidos, minimizar os custos pagos).

Enfim, quem está no topo está mais para um fantoche do poder e do capital (e que obviamente é muito bem remunerado por esse trabalho e por isso não quer abandoná-lo) do que alguém simplesmente psicopata. Como já dizia Marx, todos são escravos do capital.

Além disso, acontece com quem está no topo algo muito parecido com a maioria da população em relação ao consumo de carne animal: há todo um processo de higienização para separar os horrores do custo dos prazeres dos benefícios. Assim como a maioria das pessoas dissocia completamente o sofrimento animal ao comprar a carne cortada e embalada em plástico no supermercado, assim também a elite do planeta vive numa bolha higiênica, longe das consequências atrozes dos seus atos. Assim como todo mundo sabe, de maneira vaga e abstrata, o que ocorre na produção da “proteína animal”, assim também a elite sabe de maneira vaga e abstrata sobre os horrores que o resto da vida do planeta paga pelos prazeres dessa mesma elite. Essas consequências estão tão longe no espaço e no tempo, que soam a simples abstrações. E há também a montanha de ideologias (racionalizações) que legitimam e até glorificam o trabalho da elite. Então, é muito fácil para eles fazerem o que fazem de consciência tranquila, sem precisarem de fato serem todos psicopatas e, obviamente, sem perderem o sono por isso. Aliás, esse papo do “como você/eles consegue(m) dormir à noite?” é uma confissão de ingenuidade a cerca da capacidade de todos os humanos de inventar racionalizações/justificativas/legitimações para os seus atos e para os benefícios que recebem em detrimento dos outros seres. Ninguém perde o sono por abstrações como essas. A banalidade do mal...


09/01/22

A Navalha de Hanlon não tem fio

Quem aplica a Navalha de Hanlon (“Nunca atribua à malícia o que pode ser adequadamente explicado pela burrice”) acaba sendo facilmente enganado por quem aplica a 21ª lei do poder ("Faça-se de otário para pegar os otários – pareça mais bobo do que o normal"). As pessoas tem um viés de vaidade que já as empurra a acharem que são mais inteligentes do que os outros, ou seja, a subestimar a inteligência dos outros. Levar a sério a Navalha de Hanlon é se aprofundar ainda mais nesse viés, e é ficar cego para os que se fazem de burros ou mesmo para os que são burros, mas ao mesmo tempo são maliciosos o suficiente para instrumentalizar a própria burrice.

A Navalha de Hanlon parte de uma falsa dicotomia: a de que a malícia é completamente separável da burrice. Existem pessoas que são burras e maliciosas ao mesmo tempo, e que, inclusive, aprendem a maliciosamente instrumentalizar essa burrice, em especial para explorar os próprios parentes. Assim como existem as que sabem da prevalência estatística da burrice ante a malícia e sabem que isso gera um viés cognitivo (no sentido de achar-se que é mais razoável supor, diante de um caso concreto, sempre a burrice antes da malícia) e usam disso para fingir que são burras, ou para fingir que são mais burras do que de fato são: ou nem são burras e fingem ser, ou são mas fingem ser mais do que de fato são.

Isso leva a um paradoxo: ao superestimar a burrice e ao subestimar a malícia, a própria Navalha de Hanlon pode produzir avaliações burras.

Por fim, a Navalha de Hanlon erra por pressupor um conceito muito superficial do que é burrice (e, portanto, do que é inteligência) como sendo algo antitético à malícia, bem como adota com conceito simplista de malícia. Há muitas inteligências, e muitas burrices, e as pessoas podem ser maliciosas em certos contextos e relações e buscar compensar sendo bondosas em outros contextos e relações. Uma pessoa pode ser burra em vários aspectos, e ainda assim ter uma inteligência interpessoal suficiente para ser capaz de enganar, ou chantagear, as outras (em especial familiares). Essas outras pessoas podem até saber ou desconfiar que estão sendo enganadas, mas podem, por meio de um pacto de mediocridade moral, decidir ser cúmplices para não ter que arcar com as custos do enfrentamento (novamente, isso é muito comum nas relações familiares).

Enfim, a realidade psicológica e social é bem mais complexa e cinzenta do que pressupõe a Navalha de Hanlon, embora, de fato, a burrice seja mais forte e difundida na fauna humana do que a malícia.


11/01/22

Como abordar uma sincronicidade?


"É tudo tão inexplicável que me dói a inutilidade das ideias." (Cioran, em O livro das ilusões)


1 Trata-se de mera coincidência, de mera aleatoriedade sem sentido sobre a qual o cérebro humano (especialista em criar narrativas) está aplicando um padrão imaginário. Essa é a abordagem típica do ateu materialista e do “cético” (cientificista).

2 Houve uma intervenção humana secreta: estamos no campo das teorias da conspiração. Já aqui, a mente “racional” (herdeira do iluminismo) rechaça a aventurar-se, pois se está negando o dogma racionalista-otimista e “lúcido” (não paranoico) presente na primeira abordagem. Trata-se de um dogma, de um modelo estabelecido a priori e do qual se faz uso de maneira dedutiva (um ato de fé; onde estão os supostos ceticismo e agnosticismo?) para invalidar a validade mesmo de qualquer especulação a respeito de uma possível conspiração. Claro que também é verdade que, ao aceitar-se especular sobre uma conspiração, abre-se a porta para todo tipo de delírio. O problema é que às vezes a realidade é delirante mesmo. Basta olhar ao redor. O otimista-racionalista-privilegiado pode até olhar, mas não vai ver nada. Ele é incapaz de ver o lado sombrio da existência.

3 Houve uma intervenção secreta, mas não humana, ou não apenas humana: fácil entender o medo dos racionalistas em abrir a caixa de Pandora da conspiração, não? Pois agora já estamos falando de entidades inteligentes não humanas intervindo no mundo humano.

4 O evento foi natural, não houve uma planejamento, uma conspiração. Mas a sincronicidade é um indicativo de que, de alguma forma desconhecida, a dimensão do simbólico, do cultural, faz parte da própria natureza e está imiscuída nas relações naturais de causa e efeito.

Claro que nada impede que todas as abordagens estejam corretas, cada uma em um determinado caso concreto em particular. Às vezes um cachimbo é só um cachimbo; às vezes, não é só um cachimbo.

    






12/01/22

Quando o negacionismo não é considerando negacionismo


A maioria dos físicos não acredita que iremos algum dia conseguir realizar viagens interestelares com a facilidade com que elas são mostradas nas centenas (talvez milhares) de obras de ficção científica que abordam o tema e saturam o imaginário público. Assim também ocorre com a questão da viagem no tempo, embora essa apareça menos nas obras de ficção científica. Embora o termo seja “ficção científica”, essas ficções já se repetiram tanto que vivaram realidade: parece só questão de tempo até que desenvolvamos as tecnologias necessárias.

Porém, apesar da verdade científica, essas fantasias prometeicas já estão tão onipresentes em nosso imaginário, que soa até contraintuitivo acreditar que, mesmo se o desenvolvimento tecnológico continuar por centenas (ou mesmo milhares) de anos, simplesmente nunca teremos a tecnologia para realizar hodiernamente tais façanhas já demonstradas virtualmente impossíveis pela ciência.

Por que esse imaginário anticientífico – negacionista – é aceito pelo mainstream? Por que não é perseguido? Por que não há campanhas de conscientização? Por que os cientificistas e divulgadores científicos não militam contra essa ilusão? Por que eles, ao contrário, até mesmo chegam a celebrá-la? Bem, é fácil responder: porque é uma ilusão otimista, conveniente ao prometeismo tecnológico que anima o imaginário da modernidade e do iluminismo, porque é um imaginário reconfortante ao ego e à vaidade dos poderosos (os poderosos econômicos, os poderosos políticos e até os poderosos científicos) e da população em geral, porque atende aos interesses do poder hegemônico (inclusive ao viabilizar um volume enorme de entretenimento para as massas), porque vai de encontro à vontade de poder.

Ou seja, para uma assertiva, uma convicção, ser taxada de “negacionismo” não basta ela ser contrária ao que a ciência diz, ela também precisa ser desagradável aos interesses dos poderosos.