08/01/22
Os donos do mundo são psicopatas?
Considerar
"os donos do mundo" como simplesmente "psicopatas"
é uma simplificação moralista da questão. A verdade é que quase
todo mundo faria o mesmo que eles fazem se estivesse no lugar deles.
Há verdadeiros psicopatas no poder, mas há também os que são
"apenas" maquiavélicos, e que aprendem a sê-lo mesmo por
questão de manter seus privilégios (e os da sua família). Se eles
não jogarem o jogo com maquiavelismo, sabem que serão descartados e
perderão o poder e privilégio que possuem. Então, pensando em
defender a si próprios e a sua família, não têm outra escolha
senão jogar o jogo de acordo com as regras dadas, reproduzindo o
poder e o capitalismo. Estão presos em gaiolas de ouro. Eles são
instrumentos do poder e do capitalismo, se tentarem se opor, serão
descartados ou mesmo destruídos: não apenas eles, mas suas famílias
também.
Note
que a pessoa comum, que precisa lutar diariamente para garantir seu
lugar ao sol, está também sujeita à mesma pressão. A diferença é
que a pessoa comum está presa aos níveis mais baixos da pirâmide
de Maslow, enquanto quem está no topo está preso nos níveis
superiores, e obviamente não quer cair para os níveis inferiores e,
assim como a maioria, ter que precisar lutar diariamente pela
satisfação das necessidades mais básicas. E nós sabemos que,
satisfeitas as necessidades mais básicas, o desejo está longe de
esmorecer. O desejo (as “necessidades”, como se diz
pasteurizadamente) é tão poderoso que mesmo que os indivíduos
pudessem colecionar universos onde eles são deuses, eles ainda iriam
querer mais: e, novamente, isso não é uma psicopatia, dado que
mesmo pré-adolescentes vulgares brincam de criar universos (escrevendo
livros, criando jogos, programando simulações, etc.).
Dos
mais pobres ao bilionários, estão todos tentando sugar o máximo
que podem pelo máximo de tempo que puderem. Mesmo que saibam ou
desconfiem que a sociedade tal como é não poderá durar para
sempre, e que seus esquemas e empreendimentos particulares são
insustentáveis, o objetivo é estender o máximo que der, aproveitar
o quanto der, e ir empurrando os problemas para o futuro, para quando
não der mais para empurrar. Gerações já passaram fazendo isso, e
a atual sonha em fazê-lo também. Esse comportamento é incrivelmente semelhante, tanto na elite mais rica quanto do massa
mais pobre: focar em ganhar o máximo possível, e empurrar a conta
para o mais longe possível. A economia marginalista até chama isso
de "comportamento racional" (maximizar os benefícios
recebidos, minimizar os custos pagos).
Enfim,
quem está no topo está mais para um fantoche do poder e do capital
(e que obviamente é muito bem remunerado por esse trabalho e por
isso não quer abandoná-lo) do que alguém simplesmente psicopata.
Como já dizia Marx, todos são escravos do capital.
Além
disso, acontece com quem está no topo algo muito parecido com a
maioria da população em relação ao consumo de carne animal: há
todo um processo de higienização para separar os horrores do custo
dos prazeres dos benefícios. Assim como a maioria das pessoas
dissocia completamente o sofrimento animal ao comprar a carne cortada
e embalada em plástico no supermercado, assim também a elite do
planeta vive numa bolha higiênica, longe das consequências atrozes dos seus atos. Assim como todo mundo sabe, de maneira vaga e
abstrata, o que ocorre na produção da “proteína animal”, assim
também a elite sabe de maneira vaga e abstrata sobre os horrores que
o resto da vida do planeta paga pelos prazeres dessa mesma elite. Essas consequências estão tão longe no espaço e no tempo, que soam a
simples abstrações. E há também a montanha de ideologias
(racionalizações) que legitimam e até glorificam o trabalho da
elite. Então, é muito fácil para eles fazerem o que fazem de
consciência tranquila, sem precisarem de fato serem todos psicopatas
e, obviamente, sem perderem o sono por isso. Aliás, esse papo do
“como você/eles consegue(m) dormir à noite?” é uma confissão
de ingenuidade a cerca da capacidade de todos os humanos de inventar
racionalizações/justificativas/legitimações para os seus atos e
para os benefícios que recebem em detrimento dos outros seres.
Ninguém perde o sono por abstrações como essas. A banalidade do
mal...
09/01/22
A Navalha de Hanlon não tem fio
Quem
aplica a Navalha de Hanlon (“Nunca atribua à malícia o que
pode ser adequadamente explicado pela burrice”) acaba sendo
facilmente enganado por quem aplica a 21ª lei do poder
("Faça-se de otário para pegar os otários – pareça mais bobo do
que o normal"). As pessoas tem um viés de vaidade que já as empurra
a acharem que são mais inteligentes do que os outros, ou seja, a
subestimar a inteligência dos outros. Levar a sério a Navalha de
Hanlon é se aprofundar ainda mais nesse viés, e é ficar cego para
os que se fazem de burros ou mesmo para os que são burros, mas ao
mesmo tempo são maliciosos o suficiente para instrumentalizar a
própria burrice.
A
Navalha de Hanlon parte de uma falsa dicotomia: a de que a malícia é
completamente separável da burrice. Existem pessoas que são burras
e maliciosas ao mesmo tempo, e que, inclusive, aprendem a
maliciosamente instrumentalizar essa burrice, em especial para
explorar os próprios parentes. Assim como existem as que sabem da
prevalência estatística da burrice ante a malícia e sabem que isso
gera um viés cognitivo (no sentido de achar-se que é mais razoável
supor, diante de um caso concreto, sempre a burrice antes da malícia)
e usam disso para fingir que são burras, ou para fingir que são
mais burras do que de fato são: ou nem são burras e fingem ser, ou
são mas fingem ser mais do que de fato são.
Isso
leva a um paradoxo: ao superestimar a burrice e ao subestimar a
malícia, a própria Navalha de Hanlon pode produzir avaliações
burras.
Por
fim, a Navalha de Hanlon erra por pressupor um conceito muito
superficial do que é burrice (e, portanto, do que é inteligência)
como sendo algo antitético à malícia, bem como adota com conceito simplista de malícia. Há muitas inteligências, e muitas burrices,
e as pessoas podem ser maliciosas em certos contextos e relações e
buscar compensar sendo bondosas em outros contextos e relações. Uma
pessoa pode ser burra em vários aspectos, e ainda assim ter uma
inteligência interpessoal suficiente para ser capaz de enganar, ou
chantagear, as outras (em especial familiares). Essas outras pessoas
podem até saber ou desconfiar que estão sendo enganadas, mas
podem, por meio de um pacto de mediocridade moral, decidir ser cúmplices para não ter que arcar com as custos do enfrentamento
(novamente, isso é muito comum nas relações familiares).
Enfim,
a realidade psicológica e social é bem mais complexa e cinzenta do
que pressupõe a Navalha de Hanlon, embora, de fato, a burrice seja
mais forte e difundida na fauna humana do que a malícia.
11/01/22
Como
abordar uma sincronicidade?
"É tudo tão inexplicável que me dói a inutilidade das ideias." (Cioran, em O livro das ilusões)
1
Trata-se de mera coincidência, de mera aleatoriedade sem sentido sobre a qual o cérebro humano (especialista em criar narrativas)
está aplicando um padrão imaginário. Essa é a abordagem típica
do ateu materialista e do “cético” (cientificista).
2
Houve uma intervenção humana secreta: estamos no campo das teorias
da conspiração. Já aqui, a mente “racional” (herdeira do
iluminismo) rechaça a aventurar-se, pois se está negando o dogma
racionalista-otimista e “lúcido” (não paranoico) presente na
primeira abordagem. Trata-se de um dogma, de um modelo estabelecido a
priori e do qual se faz uso de maneira dedutiva (um ato de fé; onde
estão os supostos ceticismo e agnosticismo?) para invalidar a
validade mesmo de qualquer especulação a respeito de uma possível
conspiração. Claro que também é verdade que, ao aceitar-se
especular sobre uma conspiração, abre-se a porta para todo tipo de
delírio. O problema é que às vezes a realidade é delirante mesmo.
Basta olhar ao redor. O otimista-racionalista-privilegiado pode até
olhar, mas não vai ver nada. Ele é incapaz de ver o lado sombrio da
existência.
3
Houve uma intervenção secreta, mas não humana, ou não apenas
humana: fácil entender o medo dos racionalistas em abrir a caixa de
Pandora da conspiração, não? Pois agora já estamos falando de
entidades inteligentes não humanas intervindo no mundo humano.
4
O evento foi natural, não houve uma planejamento, uma conspiração.
Mas a sincronicidade é um indicativo de que, de alguma forma desconhecida, a
dimensão do simbólico, do cultural, faz parte da própria natureza
e está imiscuída nas relações naturais de causa e efeito.
Claro
que nada impede que todas as abordagens estejam corretas, cada uma em
um determinado caso concreto em particular. Às vezes um cachimbo é
só um cachimbo; às vezes, não é só um cachimbo.
12/01/22
Quando
o negacionismo não é considerando negacionismo
A
maioria dos físicos não acredita que iremos algum dia conseguir
realizar viagens interestelares com a facilidade com que elas são
mostradas nas centenas (talvez milhares) de obras de ficção científica que abordam o tema e saturam o imaginário público.
Assim também ocorre com a questão da viagem no tempo, embora essa
apareça menos nas obras de ficção científica. Embora o termo seja
“ficção científica”, essas ficções já se repetiram tanto
que vivaram realidade: parece só questão de tempo até que
desenvolvamos as tecnologias necessárias.
Porém,
apesar da verdade científica, essas fantasias prometeicas já estão
tão onipresentes em nosso imaginário, que soa até contraintuitivo
acreditar que, mesmo se o desenvolvimento tecnológico continuar por
centenas (ou mesmo milhares) de anos, simplesmente nunca teremos a
tecnologia para realizar hodiernamente tais façanhas já demonstradas virtualmente impossíveis pela ciência.
Por
que esse imaginário anticientífico – negacionista – é aceito
pelo mainstream? Por que não é perseguido? Por que não há
campanhas de conscientização? Por que os cientificistas e
divulgadores científicos não militam contra essa ilusão? Por que
eles, ao contrário, até mesmo chegam a celebrá-la? Bem, é fácil
responder: porque é uma ilusão otimista, conveniente ao prometeismo
tecnológico que anima o imaginário da modernidade e do iluminismo,
porque é um imaginário reconfortante ao ego e à vaidade dos
poderosos (os poderosos econômicos, os poderosos políticos e até
os poderosos científicos) e da população em geral, porque atende
aos interesses do poder hegemônico (inclusive ao viabilizar um volume enorme de entretenimento para as massas), porque vai de
encontro à vontade de poder.
Ou
seja, para uma assertiva, uma convicção, ser taxada de
“negacionismo” não basta ela ser contrária ao que a ciência
diz, ela também precisa ser desagradável aos interesses dos
poderosos.