sábado, 6 de maio de 2017

V

04/10/2016


O cristianismo não é negação da vida – não na sua forma institucionalizada. Nenhuma instituição surge e prospera, ainda mais por quase 2.000 anos, se não servir à autopoise. O que o cristianismo faz, e junto com ele o utopismo (ou “platonismo”, como diria Nietzsche) em geral, é sinalizar para uma negação do mundo, colocada como objeto a, para assim distrair a consciência do sofrimento proveniente do mundo real e assim promover a sua aceitação – ou seja, a aceitação e a afirmação da vida. É como se o paraíso cristão (e as demais utopias) fossem a cenoura que faz o cavalo se mover, e a estrada na qual ele anda fosse a vida (o mundo negado pela cenoura): é a esperança de um dia atingir essa negação do mundo (comer a cenoura, conseguir o objeto a) que move o cavalo no mundo real, que o motiva a aceitá-lo apesar dele ser-lhe desconfortável, ou mesmo horroroso. Também aqui Nietzsche erra e Schopenhauer acerta: Schopenhauer identifica o cristianismo primitivo (ainda não institucionalizado) com a negação da vida e identifica o institucionalizado com a afirmação, com o otimismo e com o “retorno ao judaísmo”.




10/10/2016


Inútil querer entender as razões dos outros, sendo que nem eles as entendem.

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“Se amar bastasse, as coisas seriam simples. Quanto mais se ama, mais se consolida o absurdo.” (Camus, em O mito de Sísifo)

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Para mim, o interesse das pessoas por política e por discussões ideológicas é uma mistura de: 1) defesa de seus interesses matérias, ligados à sobrevivência (necessidade), ao conforto (utilidade) e ao luxo (desperdício conspícuo); 2) (pre)ocupação com a coisa pública (a parte altruísta da motivação); 3) vontade de controlar a coisa pública (vontade de poder) e assim 4) enfraquecer a voz daqueles que pensam diferente (aversão à alteridade e tendência à confirmação da própria crença); 5) supervalorização a respeito da própria importância na sociedade e para a história da humanidade (auto-messianismo); 6) supervalorização da própria capacidade de conhecer a verdade factual e de julgá-la em nome dos próprios interesses e dos interesses coletivos; 7) absolutismo ideológico (crença de que sua visão de mundo é a verdade absoluta, e que se ela for adotada pelo resto da sociedade a utopia seria instaurada) e 8) o fanatismo dele decorrente; 9) a fidelidade a um grupo, dentro do qual consegue-se reforçar os mecanismo de defesa do próprio ego; e, por fim, 10) arranjar algo para distrair o vazio da existência (“arranjar sarna para se coçar”). Dependendo da pessoa e do momento, é uma característica diferente dessas que prepondera.

Esse "vazio da existência” é, para mim, como é percebido internamente pelo indivíduo a falta de objetos de desejo, e portanto a falta de sublimação das energias corporais que sobram da luta diária pela sobrevivência; quanto menos se precisa lutar pela sobrevivência, mais energias sobram e maior será a sensação de vazio. Nossos corpos são máquinas fruto de um processo de 4 bilhões de anos de seleção natural. Eles são um amontoado de algoritmos autopoieticos, cujo o fim é somente sua autoreplicação – (re)produção, de si e da espécie (via procriação). Quanto mais facilitada a vida em virtude do ócio e dos confortos da civilização, mais energias sobram e precisam ser sublimadas via distração. Como não existe nenhuma destinação natural para essa energia que sobra, qualquer destinação será por definição fictícia, delirante. Discutir política, literatura, filosofia, ver televisão, etc., são apenas diferentes estratégias para eludir o vazio.

14/10/2016

Ando me especializando em não ter opinião. Isso não é fácil, dada a nossa tendência a querer ter opinião sobre tudo. Agora, eu só me disponho a opinar sobre o que estudo, e só estudo o que me diz respeito direto (pois indiretamente tudo me afeta, e não há recursos disponíveis para estudar tudo).

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A minha aceitação da vida e do mundo é antes fruto de um cansaço em estar frustrado do que fruto de um amor sado-masoquista (fui ao indifferens fati  a partir do odium fati). Estar frustrado é cansativo e estressante, é incompatível com os meus quatro objetivos: longevidade, bem-estar, empregabilidade  e patrimônio econômico. Claro que esse cansar-se foi facilitado pela idade (fim da adolescência) e pela conquista de um padrão de vida relativamente confortável. A melhor palavra para descrever o resultado desse cansaço é “resignação”: pois não se trata de uma renúncia à visão do mundo como sendo essencialmente mal, mas um renúncia – uma desistência – ao opor-se a esse mal.

Da forma como eu mesmo categorizo, a minha aceitação é parcial, dado que eu só estou comprometido com a minha própria autopoiese, mas não com a da sociedade nem com a da espécie (comprometimentos esses que eu considero essenciais tanto para definir tanto o amor fati quanto para definir o além-do-homem).

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