16/03/2017
Existem basicamente dois mercados ligados ao “objeto a” “desenvolvimento pessoal”: um ligado ao empreendedorismo (em que as figuras que inspiram são bilionários) e um ligado à espiritualidade (em que as figuras que inspiram são religiosas, ocultistas e esotéricas). Até há momentos de conexão entre os dois mercados, mas em geral eles funcionam separados um do outro.
O mercado da saúde perfeita acaba dando apoio a esses dois, embora também tenha vida própria e ganhe contornos diferentes nas suas interconexões com o mundo do empreendedorismo e com o mundo do esoterismo.
Tem ainda o mercado da estética, que perpassa o da saúde perfeita e o do empreendedorismo, e às vezes até o do esoterismo, mas também tem uma vida própria.
As religiões se apropriaram dos discursos de autoajuda. Visto que era inútil demonizá-los, o jeito foi absorvê-los.
*
Minha atual definição de ideologia: é uma ordem simbólica, parte integrante do mapeamento cognitivo, dedicada a tentar dar conta do mal-estar que é constitutivo ao ser humano (e oriundo da tríplice raíz do Mal: a autopoiese, a heterotrofia e a lucidez). A ideologia não é uma parte bem delimitada, separada das demais, do mapeamento cognitivo. Ao contrário, as redes neurais ligadas à ideologia estão ramificadas por toda parte cognitivo-emocional do cérebro, afetando até a percepção do mundo físico. A ideologia não é somente, como imaginou Marx, uma legitimação idealista de relações de exploração, é, antes disso, uma legitimação inventada pela consciência (estimulada pelo instinto de autopreservação) para o próprio viver – legitimação que ela, em monólogo, apresenta para si mesma, tentando assim contornar a ferida mortal causada pela exaptação negativa da lucidez.
17/03/2017
As pessoas se submetem à autoridade de líderes não somente porque são ingênuas e ignorantes, mas porque, para suportar o sofrimento (para justificá-lo), querem acreditar que uma transcendência é possível. Os líderes corporificam a transcendência e, ao mesmo tempo, servem de facilitadores do processo (fictício) de transcender de seus seguidores. Os que os líderes têm realmente a mais que os seus seguidores é a capacidade de persuasão e um conhecimento doutrinário (teórico e prático – no caso dos gurus orientais a prática é bem mais importante do que no Ocidente, onde ela se reduz basicamente a rituais); o resto é tudo teatro, no qual as pessoas (líderes e seguidores) acreditam porque querem acreditar, por viés de confirmação.
Essa autoridade que os líderes têm leva-os naturalmente (via vontade de potência) a se envaidecer por causa do controle que exercem sobre os outros. Não se tem seguidores submissos impunemente. Quando, no contexto da maioria das religiões organizadas, se mistura essa autoridade com repressão sexual – e não raro uma sexualidade extremamente limitada (ou mesmo ausente) é justamente um dos atributos distintivos do líder religioso – tem-se um “fábrica” de pedofilia. As religiões organizadas, em especial o catolicismo com sua castidade formal obrigatória a todos os que trabalham na administração do negócio religioso, não são meros atratores de pedófilos psicopatas ou maquiavélicos (que planejam friamente seus ataques sexuais), mas são mesmo produtoras de pedófilos, em virtude dessa mistura de autoridade infalível com repressão sexual (e ainda com idealizações invejosas da pureza e da inocência infantis).
*
A indústria do entretenimento foi essencial para o aumento da não religiosidade da população – isso porque tanto ela quanto a religião trabalham no mesmo mercado, o da distração do vazio, para assim justificar (tornar justo, aceitável) o sofrimento de existir e assim viabilizar a adesão voluntária à autopoiese. Não se trata de “uma armadilha”, de “um engodo” no sentido tradicional dessas palavras, pois afinal as pessoas – particularmente os instintos autopoiéticos delas – demandam esse tipo de distração, a qual é essencial para elas sobreviverem e para atuarem com agentes da autopoiese de si mesmas, da sociedade e da espécie: sem ilusão e sem esquecimento, a vida não se sustenta, não suporta a si própria.
*
Quando os ideólogos (no sentido marxiano) dizem que o mundo dos homens é reflexo do transcendente, e são criticados pelos materialistas por isso, eles não deixam de ter razão, no sentido de que essa ficção de fato é essencial para a sobrevivência humana. Assim, tanto esses ideólogos quanto os marxistas estão parcialmente certos e errados ao mesmo tempo. O marxismo só fez mudar a utopia do além-morte para o futuro histórico, é esse o objeto a que ele usa como distrator do sofrimento de existir.
19/03/2017
O crescimento da não religiosidade parece ter mais a ver com o crescimento da indústria do entretenimento (que oferece distrações utópicas do vazio sem cobranças morais e com um biopoder mais flexível e sutil do que o da religião) na modernidade tardia (fruto do progresso técnico capitalista) do que com a difusão da educação científica. Mais um evidência de como os neoateus e os cientificistas sequer entendem seu inimigo declarado: tentam combatê-lo com a educação científica, mas não percebem que a questão da “verdade” nem é a necessidade mais importante que a religião atende em seus fiéis.
25/03/2017
Pragmatismo (não utopismo): ocupar-se do mundo tal como ele é (e de como tirar proveito disso), e não de como ele deveria ser (utopias/valores). O mundo é o que é, comprometer-se em criticá-lo ou em elogiá-lo implica em vieses cognitivos e de ação que acabam por reduzir suas opções. Como já disse Robert Greene, “não se comprometa com ninguém”.
28/03/2017
“Honra” é um expediente do biopoder – um artifício para controlar as pessoas em prol do maquinismo social estabelecido.
30/03/2017
O próprio discurso do Cioran apresenta um VIÉS COGNITIVO CAUSADO PELO PENSAMENTO UTÓPICO: ele idealiza a condição animal (chega a chamá-la de “paraíso”) e acaba focando sua anatomia do Mal em apenas um de seus tripés, aquele que é especificamente humano (a exaptação negativa da lucidez), ignorando os outros dois: a heterotrofia (que é comum a todos os animais) e a autopoiese (comum a todos os seres vivos, desde o primeiro deles). Ele até chega a se referir aos outras duas raízes do Mal, mas não se delonga em escrutiná-los, como se temesse destruir com esse escrutínio a sua utopia pessoal. Nesse sentido, o discurso de Schopenhauer – ao dar mais destaque para a autopoiese (na forma de Vontade) – é menos viesado do que o do Cioran. Não que Cioran esteja completamente errado ao elogiar a condição animal – de fato ela implica em menos sofrimento (por só ter uma dupla raiz do Mal), assim como a condição da planta não implica em sofrimento (embora já tenha a principal raiz do Mal). O problema é que ele exagera o foco, ao ponto de facilmente induzir a si e aos seus leitores a esquecerem as outras duas raízes do mal em detrimento da mais superficial delas (a propriamente humana) – e nisso reside seu viés cogntivo, fruto de um utopismo.
31/03/2017
Os escatologistas parecem ter um viés cognitivo animado por uma pulsão de morte: não apenas eles querem morrer, mas querem que tudo morra – toda humanidade, ou mesmo todos os seres. Tão frustrados estão com suas vidas, que desejam morrer e se vingar desse mundo que as produziu tal qual elas são (e não tal qual eles gostariam que elas fossem). Para fins da construção de sua ideologia, a própria extinção – que, de resto, é tautológica (tudo o que começa no tempo nele vai terminar) – converte-se em utopia, à qual está prestes a ocorrer: um dealbar de um anti-Milênio. Não estou dizendo que os discursos escatológicos devem ser descartados por possuírem um viés cognitivo que os estrutura – afinal, todo discurso, e toda construção de realidade (até mesmo a intuição do mundo físico), é, enquanto “recorte”, mediado por vieses. A questão é atentar-se para as possíveis deformações na apreensão da representação do real causadas por essas tendências à confirmação. Sem uma autocrítica nesse sentido, o escatologista não tarda a virar uma caricatura, vendo o fim do mundo iminente em qualquer evento cotidiano.
*
“O primeiro sinal do começo do entendimento é querer morrer.” (Franz Kafka)
*
Boa parte das obras literárias (se não todas) pode ser considerada como a fabricação ficcional de evidências para legitimar alguma ontologia. Os momentos “profundos” das obras literárias, como também os dos filmes, são sempre relativos a apresentação/defesa de uma ontologia. A obra literária – por definição ficcional – é uma forma de sofística ontológica. Enquanto o discurso ontológico da filosofia e das ciências humanas é um discurso genérico – uma metanarrativa – o discurso da literatura, embora também almeje tocar o geral – é uma casuística, a exposição de um caso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário